terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O Grande Natal

Os judeus gloriavam-se da proximidade de Deus ao Seu povo. Elucidativas as palavras do Deuteronómio: “Que grande nação haverá que tenha um deus tão próximo de si como está próximo de nós o Senhor nosso Deus?” (Deut., 4, 7)
Ocorrem-me estas palavras em tempo de Natal, quando celebramos o mistério maior da nossa fé cristã, que é o mistério da Incarnação, e penso quanto as nossas celebrações natalícias andam em geral arredadas e muito do essencial do mistério que se comemora.
E não. Não vou bater no Natal consumista dos presentes que se trocam e em que parece esgotar-se a amizade entre pessoas. Nem no Pai Natal que vem da Lapónia num carro puxado a renas distribuir brinquedos aos meninos: os anglo-saxónicos ainda lhe põem uma pitada de religioso identificando-o com S. Nicolau – nós nem isso. Falo atrevidamente do Natal com Menino Jesus – exaltação da infância e chamamento à ternura e à solidariedade, e não renego a poesia do presépio com o menino aquecido pelo bafo quente dos animais, a vaca e o burrinho que a tradição fixou.
Mas o essencial do Natal não está aí. O essencial do Natal é o mistério de um Deus que se faz homem. Não um deus que toma a aparência de homem para assim comunicar com os outros homens. O Cristo, deus com aparência de homem, foi o erro dos docetas que a Igreja condenou. O Deus do Natal é o Deus que assumiu a natureza humana real, que, sem deixar de ser Deus, se torna homem verdadeiro – Deus verdadeiro e homem verdadeiro – para comungar da existência humana, das suas limitações e da sua grandeza, do seu pensamento e das suas emoções; tão homem como qualquer homem, e que não é já apenas “Deus connosco”, mas passa a ser “Deus um de nós”. Com verdade a espécie humana pode dizer que houve, num tempo bem determinado da história, um dos seus, um indivíduo dessa espécie que era realmente Deus. Esta é a verdadeira dimensão do Natal: a união da divindade à natureza humana, a assunção irreversível, pelo Deus eterno e infinito, da criatura temporal e limitada.
No mistério do presépio, Deus não está apenas connosco: Deus é um de nós. E ao fazer-se um de nós, o Eterno fez-se tempo, entrou na História, comprometeu-se com ela. A partir daí, a história do homem não pode fazer-se sem mencionar Deus, porque a história dos homens é também a história de Deus. Esta a singularidade da religião cristã, quase blasfema, que proclama a comunhão do absoluto com o contingente: contingente enquanto homem, absoluto enquanto Deus. E a apontar, pela própria lógica das coisas, para a improvável absolutização do contingente, se não se quer o absurdo de ser este a absorver o absoluto. Como toscamente dizia o nosso épico: “Do Céu à Terra enfim desceu / para subir os mortais da Terra ao Céu”. Porque, no menino do presépio, naquela natureza humana assumida por Deus, é de certo modo toda a humanidade que é assumida, numa aliança indestrutível e eterna.
J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Único Sabor

Sabor, sabor oculto,
submerso,
sabor adormecido, ó rosas, ó antes, primaveras,
sabor só abruptamente surto na queda do sono, no fulgor de um relâmpago,
surto, submerso.
Ó sabor antes da consciência, antes de tudo,
ó sabor só nascido sobre a paz última de tudo para além de tudo,
sabor da terra ainda antes dos olhos,
sabor a nascer, sabor-desejo, antes do beijo, sabor de beijo,
sabor mais lento, mais fundo, mais de dentro,
sabor a marulhar, cálido, denso, como a cor,
sabor de estar, sabor de ser,
ó tranquila degustação sem mandíbulas,
sabor de dentro como de um cheiro imemorial presente,
ó colinas esparsas, ó veios de águas sussurrantes,
somente ouvidos, nem sequer ouvidos, mas presentes, esparsos,
ó presença da terra nas pálpebras, num sabor acre da garganta,
ó estrelas, ó verdadeiras estrelas da infância,
ó sabor do escuro, do ventre, da espessura da noite,
ó profundo sono de raízes,
ó água bebida ao rés da terra, ó sono da vida,
ó som de bichos, de tudo e nada, num só obscuro silêncio,
ó terra junto a mim, ó grande e estranha terra,
ó perdida proximidade, ó perdida longinquidade,
ó enorme som de búzio do mar, ó tranquilos jardins, ó sabor de cansaço,
ó sabor antes de mim,
ó quando eu não sabia e tudo em mim sabia,
ó noite, ó espessura, ó outra vez a noite,
outra vez esse sabor submerso, esse sabor do fundo,
esse sabor bem longe, esse sabor total,
esse sabor onde eu sinto a terra num só gosto,
esse sabor original, fonte de todo o sabor,
surto submerso,
ó único sabor.

António Ramos Rosa

domingo, 13 de dezembro de 2009

M A G N I F I C A T

S. Lucas guardou no seu Evangelho o cântico que Maria terá entoado quando, após a anunciação do Anjo de que iria ser a mãe do Salvador, se encontrou com sua prima Santa Isabel, tocada também ela pela graça do Céu para ser a mãe de João Baptista. Falamos do Magnificat, tal como nos aparece em Lucas, cap. I, vv. 46-55.
É um hino muito belo de louvor a Deus, de agradecimento pelas maravilhas que operou, mas também de revelação dos desígnios de Deus acerca dos homens:
Manifestou a força do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
e aos ricos despediu-os de mãos vazias.(vv. 51-53)

Maurras, fundador da Action Française, que de todo não se revia em semelhante concepção do mundo, viu bem a força subversiva destas ideias e agradeceu à Igreja por ter embrulhado conceitos tão agrestes e perigosos em música suave que lhes retirava a força agressiva que realmente continham. Já o agnóstico Paul Claudel encontrou a Fé ao ouvi-las cantar na catedral de Notre Dame. De facto, este elogio da humildade e da pobreza é bem a antecipação abreviada do programa de vida proposto por Jesus nas Bem-aventuranças.
Eu sei que casa mal com a cultura dominante, obcecada pela ganância, ávida de poder e de notoriedade, esta exaltação do despojamento e da humildade. Mas, se olharmos para os males que se abateram sobre o mundo, nomeadamente os mais recentes, não é difícil concluir que a crise que vivemos é realmente fruto da ganância de muitos que, do alto da sua soberba, não tiveram a humildade de reconhecer a realidade das coisas e julgaram poder afeiçoá-las à sua vontade.
Apetece-me citar Santa Teresa de Ávila quando escreve que “a humildade é a verdade”. A que acrescentareis a aguda observação que Baruc Espinoza nos deixou na sua Ética: “Se supusermos um homem que tem consciência da sua fraqueza, porque conhece algo de mais poderoso do que ele próprio, e através desse conhecimento delimita o seu próprio poder de acção, não conhecemos nada mais do que um homem que se conhece perfeitamente a si próprio, isto é, que tem consciência de que o seu poder de acção é secundado”.
Não haverá cristão que não subscreva estas observações.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

DEUS DE ALEGRIA


Que viestes vós ver aqui?
Um Deus estabelecido
Numa adorável solidão,
Guardando um eterno silêncio
A fim de se ocupar apenas
Da Sua glória?

Um Deus instalado
Num eterno repouso
Onde contempla o seu próprio poder
A fim de se saciar com ele?

Um Deus que lançou
O universo na sua trajectória
E depois deixa-o derivar
Antes de ele próprio se retirar
Para o seu eterno infinito?

Aquele que viestes contemplar
É um Deus de dança
Que arrasta os vivos com a sua música
No seu eterno movimento de alegria!

É um Deus de Palavra
Porque não quer existir
Senão para um eterno face a face
De partilha e de amor
Com os vivos!

É um Deus de beleza!
Para felicidade dos vivos
Ele pinta muitos arco-íris
Como brilhantes frescos
Sobre a imensa tela do universo!

É um Deus de abundância
Que multiplica para nós as dádivas
E que nos torna seus aprendizes
A fim de que nos tornemos, com Ele,
Seres vivos dançantes, de palavra e beleza,
Que trabalhem com Ele para sempre!

É um Deus que faz novo o universo
Sem lágrimas e sem luto!
É um Deus que faz brotar a vida!

Bíblia 2000. vol. 18, pag. 186

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O M E U A D V E N T O

Estamos no tempo do Advento, aquele tempo em que a Igreja convida os seus filhos a prepararem-se para celebrar o mistério maior da nossa Fé: a Incarnação do Verbo, a assunção por Deus da natureza humana para se fazer um de nós, igual em tudo aos outros homens, excepto no pecado – como judiciosamente observa S. Paulo.
E aos nossos ouvidos a liturgia faz ecoar as palavras dos Profetas, interpretes da expectativa ansiosa com que o Povo de Deus, com que (porque não dizê-lo?) toda a humanidade aguardava aquele momento culminante da História em que, assumindo o risco do compromisso com a mesma História, Deus se fazia seu agente directo, não já apenas através das causas segundas, mas em pessoa. “Mandai, ó céus, lá do alto o vosso orvalho; que as nuvens façam chover o Justo; abra-se a terra e germine o Salvador”. (Is., 45, 8). E a expectativa comemorada culmina na comemorada celebração do nascimento de Jesus – de qualquer modo um acontecimento passado que, passível embora de ser repristinado por cada um à sua maneira, não deixa de ser passado, por força mesmo do compromisso com a História de que falámos.

Mas há um Advento que se pode celebrar não como memória de um tempo passado, mas como vivência de um tempo presente. Lembro-me, aliás, de que, antes da reforma litúrgica em vigor, se lia em dois domingos seguidos o evangelho do fim do mundo: era no último domingo depois do Pentecostes e no primeiro domingo do Advento. Justamente. A Mãe Igreja fazia questão, no início da caminhada para o Natal, de lembrar ao Povo de Deus que o seu tempo presente é um tempo de espera e de expectativa, não apenas em sentido comemorativo, mas no sentido real do presente que se vive. Porque o grande sentido da caminhada do Povo de Deus ao longo dos séculos é esta atitude de espera e de esperança no Senhor que vem
E o Senhor virá quando a grande obra da Redenção, que Ele realizou morrendo na cruz, se encontrar consumada também na sua dimensão cósmica.
Há um texto precioso (infelizmente muito esquecido) de S. Paulo no capítulo VIII da Epístola aos Romanos, em que o Apóstolo é muito claro e impressivo quanto a esta dimensão cósmica da Redenção: a criação inteira vive uma expectativa ansiosa aguardando a revelação dos filhos de Deus (v. 19), quando ela própria será libertada da escravidão da corrupção para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus (v. 21); e a criação vive essa expectativa em sofrimento, pois “geme e sofre as dores do parto” (v. 22) até que chegue o momento em que a Redenção de Cristo se encontre consumada – e então o Senhor virá em glória.
É este o Advento real e não apenas simbólico que se encontra em curso e que somos convidados a viver activamente todos os dias. Porque este trabalho é obra de Deus (“o meu Pai continua a operar e eu também”, disse Jesus – Jo., 5, 17) mas é também obra dos homens que vivem no mundo e operam no mundo o trabalho de Deus.
E o mundo, a criação fará o seu caminho até à Parusia – a revelação do Cristo glorioso que então e só então poderá entregar ao Pai todas as criaturas que o próprio Pai submeteu ao seu domínio, e DEUS SERÁ TUDO EM TODAS AS COISAS (Cf. 1Cor., 15, 28).
É este o grande Advento que me seduz. É ele que dá sentido a quanto fazemos os que acreditamos que, para glória de Deus Pai, Jesus Cristo é o Senhor. Ámen. Vem, Senhor Jesus.
J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

ler a Bíblia

Muitos cristãos se queixam de que é difícil ler a Bíblia. De facto, assim é. A Bíblia é um livro muito especial. Antes de mais há que ter presente que a Bíblia não é um livra apenas, mas sim um conjunto de muitos livros. O nome no singular que nós usamos traduz o plural grego tá Biblía, que quer dizer “os livros”. Por outro lado, a colectânea de livros que constituem a Bíblia foram sendo escritos ao longo de muitos séculos e em línguas que nos são estranhas: o Velho Testamento em aramaico, e o Novo Testamento em grego.
Estas características inegáveis de pluralidade dos livros, dos tempos longínquos em que foram escritos, das línguas e, consequentemente, das culturas diversas em que foram vasados fazem com que, sendo objecto de Fé, a Bíblia seja antes de tudo objecto de estudo. Centenas de homens, sobretudo no último século e meio, dedicaram a sua vida ao estudo científico da Bíblia: judeus, católicos e protestantes fundaram e mantêm escolas onde os segredos do Livro têm vindo a ser desvendados, e contam-se por centenas de milhares as obras que resultaram desses estudos.
Não quer isto dizer que a leitura da Bíblia deva ficar reservada aos poucos que queimaram as pestanas a perscrutar os seus segredos. Todos os cristãos têm o direito e o dever de ler a Bíblia, que é o tesouro maior do Povo de Deus, repositório das verdades que o Senhor quis dar a conhecer aos homens e que são objecto da nossa Fé. Mas para uma leitura fecunda da Bíblia há que ter em conta certas evidências.
A primeira é a de que na Bíblia se cruzam vários géneros literários, e, como é óbvio, é diferente a intelecção de um poema, de um conto, duma narrativa histórica, de um livro de autoajuda. E de tudo isto encontramos exemplos na Bíblia. Como encontramos a narrativa épica ou o género apocalíptico. No Cântico dos Cânticos é fácil identificar um belo poema de amor. Mas já não o é tanto ver no livro de Job uma ficção, um conto. Lê-lo como se ele narrasse uma história realmente acontecida, é um erro, pois o que ali é mais importante é a “moralidade” – o epimythion das fábulas gregas – que é o que no caso realmente interessa ao autor sagrado.
Depois, há que ter em conta a finalidade da Bíblia que é a revelação de verdades religiosas e não o desvendar dos mistérios da ciência. Tomemos o caso do Génesis e da criação do mundo. Erradamente se tem oposto o criacionismo bíblico ao evolucionismo consagrado pela ciência. Alguma contradição entre a Bíblia e a ciência? Não, se nos lembrarmos que a Bíblia, dada a sua finalidade, se limita a ensinar, no quadro cultural do tempo, o quê da criação, enquanto a ciência se aplica a desvendar o como. A Bíblia ensina que tudo quanto existe foi criado por Deus, que é bom tudo o que Deus criou, que o aparecimento do homem é objecto duma especial atenção de Deus. A ciência dedica-se a descobrir o como do aparecimento de tudo quanto existe. E fala do big bang, fala da evolução, fazendo intervir realidades como o Acaso (?) e Lei dos grandes números entre outras. Mas não é por isso que Deus deixa de ser o Criador, pois a sua acção directa dá-se e esgota-se no surgimento do ser a partir do nada. O resto, como diz S. Tomás de Aquino, Deus entrega à acção das causas segundas. Como dia o Salmo, “O Céu é do Senhor; a Terra deu-a aos filhos dos homens”. Deus revelou, na linguagem que a cultura do tempo aconselhava, o que era necessário para que o homem percebesse o sentido da vida. O resto, quis o mesmo Deus que fosse o próprio homem a descobrir.
A ter em conta também o contexto cultural. Por exemplo, fala-se na Bíblia das águas inferiores a das águas superiores. Tudo fica claro quando pensamos que para os judeus desse tempo, a abóbada celeste era literalmente o telhado do mundo que impedia as águas de cima de inundarem a Terra. Quando esse telhado se rompeu, deu-se o dilúvio. Outro exemplo: diz-se nos Salmos que Deus perscruta o coração e os rins. Parece-nos destituída de sentido este interesse nefrológico do Criador. Até descobrirmos que, ao tempo, o coração era a sede do pensamento (como hoje é a sede dos afectos na linguagem dos apaixonados) e os rins a sede dos afectos. E assim por diante. O ideal era que nós pudéssemos captar no texto sagrado aquilo que os seus destinatários imediatos nele descobriam. Tomemos o mito de Caim e Abel. É evidente que ao tornar fratricida um dos filhos de Adão se quer significar que o mal introduzido no mundo pelo pecado do primeiro par humano continuou depois dele a difundir-se – e este será mesmo o ponto chave que se quer transmitir. Mas se, como referem alguns peritos, a raiz etimológica de Caim é a mesma de “ter” e a raiz etimológica de Abel é a mesma de “ser” (pormenor que de todo nos escapa) os primeiros leitores do mito terão percebido que o ter pode conduzir ao crime e que a superioridade moral do ser sobre o ter cria a fronteira entre a vida e a morte.
Ler a Bíblia pode ser uma verdadeira aventura do espírito para aqueles que estão habilitados a desvendar os seus segredos. Não será o caso do comum dos cristãos. Mas o que fica dito pode ser um convite a que os cristãos, para além de lerem, se dediquem a estudar a Bíblia. Há cursos de iniciação aos estudos bíblicos e há edições da Bíblia em que especialistas ajudam, com as suas anotações, a ultrapassar as dificuldades dos textos.
...E há a luz do Espírito Santo que não deixará de iluminar aqueles que, de coração limpo, abordam a Palavra de Deus.
J. Tomaz Ferreira

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O S TEMPOS DOS HOMENS

Acaba de ser canonizado um pobre padre belga, de seu nome Damião de Veuster. Nasceu a 3 de Janeiro de 1840 na pequena localidade de Tremele perto de Lovaina e recebeu no baptismo o nome de Josepah. Tomou o nome de Damião quando ingressou na humilde Congregação dos Padres dos Sagrados Corações.
substituição de seu irmão Panfilo que a isso estava destinado, mas que o tifo arrebatou prematuramente deste mundo. Acasos da vida ou jogos de Deus.
A viagem foi dura: 148 dias no mar, sem escala, até desembarcar em Honolulu a 19 de Março de 1864. Ali iniciou o seu ministério apostólico e ali tomou conhecimento de que uma das ilhas do arquipélago fora dedicada a colónia de leprosos – Molocai é o seu nome. É-nos difícil imaginar o que era nesses tempos a condição de leproso. Lembramo-nos da Bíblia que entre os Hebreus, os leprosos eram expulsos das cidades e obrigados a viver nos descampados para evitar que contagiassem os outros. Assim acontecia ainda em meados do século XIX, e quem leu o livro Papillon de Henri Charrière deve recordar-se da descrição que ele faz da ilha dos leprosos a que aportou numa das suas tentativas de fuga.
Em Molocai viviam apenas leprosos que, de tempos a tempos, recebiam alimentos e roupas, mas onde ninguém se atrevia a fixar-se para os ajudar, com medo de contrair a doença maldita. Pois em Março de 1873, o P. Damião obtém dos seus superiores autorização para se fixar na ilha. Este simples gesto tinha simbolicamente, para os leprosos que ali viviam, um sentido redentor, que me atrevo a considerar mais importante do que a própria cura da doença: a reabilitação da dignidade humana daqueles que a sociedade expelira e votara ao abandono. Dali em diante, os doentes de Molocai deixavam de ser os párias malditos quer todos execravam. Alguém, são de corpo e alma, fora ao seu encontro para partilhar com eles a sua vida e, mais do que isso, com os parcos recursos de que dispunha, tentar aliviar o sofrimento atroz provocado pela doença.
Foi um trabalho hercúleo, porque, naquela ilha, tudo estava por fazer... et pour cause... O padre não tinha casa e, se a quis, teve que a construir. E construiu para si e para os seus irmãos leprosos. E construiu também um hospital onde ia cuidando como podia dos doentes, tentando, senão curá-los, aliviar-lhes o sofrimento. Naquela terra do desespero, o seu gesto de amor fizera brotar a esperança e ressuscitara a dignidade no coração daqueles malditos da terra.
Como era de prever, o Padre Damião contraiu também ele a lepra. Os primeiros sintomas aparecem em 1887. Devorado pela doença, morre aos 49 anos de idade, em 15 de Abril de 1889.
A Igreja esperou 120 anos para declarar a heroicidade das suas virtudes (evidente, parece-me a mim). Para outros, foi mais diligente, e poucos anos bastaram para serem elevados às honras dos altares. Vontade de Deus? Caprichos dos homens? Parece que na vida da Igreja pode menos o brilho humilde da virtude do que a força das influências do mundo. Entenda quem puder
.
J. Tomaz Ferreira

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

500 anos nascimento de Calvino - U.Lusófona

Universidade Lusófona
9 e 10 de Outubro de 2009
1º dia (Auditório Vítor de Sá)
14:30 - Abertura
15:00 - Calvino e a sua época (conferência pelo Prof. José Carlos Calazans )
15:45 - Pausa
16:00 - 1ª Mesa: A Salvação na Teologia de Calvino (Prof. Dimas Almeida, Dra. Eva Michel, Prof. João Custódio Nunes) – Coordenação da Mesa Dr. Silas Oliveira.
17:00 - Debate
18:00 - Encerramento
2º Dia
9:30 - 2ª Mesa Redonda: Calvino, Exegeta da Escritura (Prof. Alan Pallister, Dr. José Manuel Leite, Dr. Timóteo Cavaco) - Coordenação da Mesa Pr. José Salvador.
10:30 - Debate
11:00 - Pausa
11:20 - 3ª Mesa Redonda: A Igreja segundo Calvino (Prof. Manuel Pedro Cardoso, Prof. Luís Melancia, Dr. Simão Daniel Silva ) - Coordenação da Mesa Prof. Dulce Cabete.
12:20 - Debate
13:00 - Almoço
14:30 - 4ª Mesa Redonda: Calvino, capitalismo e democracia (Dr. Luís Aguiar Santos, Prof. José Eduardo Franco, Dr. David Valente, Dr. Rute Salvador) - Coordenação da Mesa: Prof. Paulo Mendes Pinto
15:30 - Debate
16:00 - Pausa
16:30 - Calvino hoje (conferência pelo Prof. Dr. Lon Weaver)
17:30 - Encerramento

Uma viagem pelos caminhos de Deus...Em Ávila com Sta Teresa de Jesus...







sábado, 26 de setembro de 2009

A religião ou o sentimento religioso...

A religião, ou o sentimento religioso, é o mais inconfessável de todos: não por irracional, mas porque é da sua mais íntima natureza o silêncio da vida física do universo, que só faz barulho por acaso e não para a gente ouvir. Que mais não fosse, acharia ridícula, e acho, a atitude dos «libertos», nascidas da cabeça de Júpiter, desirmanados de tudo quanto encarnou as dores e as esperanças de uma humanidade dolorosamente em busca do seu próprio corpo. Mais que ridícula, criminosa, estulta, digna dos raios divinos, se os houvesse. Neste sentido, me é respeitável a religião considerada na sua acção interior e na sua simbólica aparente; e, como poeta, não posso deixar de ser sensível ao paganismo que a Igreja Católica não sonha - ou sonha até - a que ponto herdou. Quando a religião pretende fixar-se, lutar ligada a interesses materiais que geraram muitas das formas que ela tomou, evidentemente que sou contrário a ela, a aquela, porque sei que não há eternidade das formas e das convenções, mas sim da orgânica simbólica que assume uma ou outra forma, segundo o estado social em que se desenvolve.
Jorge de Sena, carta a sua noiva Mécia Lopes, 15 Dezembro 1947

terça-feira, 15 de setembro de 2009

“ M’ESPANTO AS VEZES...” (Sá de Miranda)

É mandatária para a juventude de um grande partido de esquerda. Cara bonita, a televisão de Balsemão explora-lhe os méritos como apresentadora e pelo menos uma agência de publicidade pô-la a ilustrar um anúncio.
Filha de família com posses e nome (nesta terra quem tem posses nome tem e vice-versa), dada a sua condição teve que fazer a opção de classe para militar nas hostes dos que, em programa, se deram como missão defender dos vampiros exploradores as classes mais desprotegidas. Ilustrou essa opção fazendo saber que só come cerejas e uvas depois de a criada lhes ter extraído caroços e grainhas. Como qualquer mortal, não gosta de engolir caroços nem grainhas. A opção de classe que fez explica o modo bizarro como contornou a dificuldade.
Ao nível da mentalidade, é modernamente “fracturante” quando proclama que é melhor ganhar eleições fazendo batota do que perdê-las. Não me admiraria, se o seu partido ganhar, de a ver a propor leis fracturantes que descriminalizem a corrupção, a falsificação de documentos, o perjúrio, o falso testemunho, e cosi via.
Os botas de elástico presos a princípios de ética ou moral hão-de bramar contra isso. Nada que um referendo não resolva: se for vontade do povo consagrar a batota como comportamento a seguir, não apenas em eleições, mas na vida toda, seremos todos muito felizes.
Como é que Cristo, nas bem-aventuranças, se esqueceu de dizer: Bem-aventurados os que fazem batota, porque eles possuirão a terra? Pois não é evidente?

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O DEUS CRISTÃO

O Cristianismo não é uma nova ideologia, que proponha uma explicação satisfatória para as várias contradições da condição humana.

O cristianismo é uma existência nova
E a sua resposta só é satisfatória para aqueles
Que se empenham totalmente a seguir a Cristo,
Para fazer recuar o mal sob todas as suas formas.

O Deus cristão é o fundamento mesmo da responsabilidade total do homem,
Relativamente aos seu irmãos e relativamente ao mundo.


CL.-J. GEFFRÉ, o.p.

domingo, 2 de agosto de 2009

PENSAR O MUNDO

Ensinaram-nos no catecismo que são três os “inimigos da alma – Mundo, Demónio e Carne. É grande a tradição de fuga ao mundo nos caminhos para a perfeição cristã. Vem dos primórdios do Cristianismo a fuga para o deserto dos anacoretas, que na solidão absoluta viviam em penitência a luta contra as tentações da carne e do Demónio (como Santo Antão – mas não precisavam de enfrentar os perigos do Mundo com quem radicalmente tinha cortado todo o contacto.
Esta ascese da solidão foi mais tarde substituída pelas Ordens religiosas que, preservando os valores da vida em comunidade, e aproveitando-os como ajuda ao crescimento espiritual, mantinham no silêncio dos claustros a mesma aversão ao Mundo de que se viam protegidos pelos muros do convento.
Esta diabolização do mundo colhe a sua origem o Evangelho de S. João onde nos aparecem dois conceitos de mundo que não se devem confundir. O primeiro é o mundo como realidade criada, obra do Verbo - “por Ele mundo veio à existência” (Jo., 1, 10) – e, como tal, classificada de “muito boa” por Deus: “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gen., 1, 31). Este é o mundo que Deus ama, segundo o testemunho do próprio Cristo no seu diálogo com Nicodemos: “Deus amou tanto o mundo, que lhe entregou o seu próprio Filho Unigénito” (Jo., 3, 16).
A par deste mundo, aparece-nos, sempre no Evangelho de João, nomeadamente nos capítulos 15 e 17, um mundo hostil que assume uma posição de ódio para com os discípulos de Jesus, para com aqueles que ouviram a sua palavra e a seguiram. O ódio aos discípulos mais não é, aliás, do que o seguimento do ódio que votou ao Mestre e que tem a sua explicação no facto de um e outros não pertencerem a esse mundo: “Se o mundo vos odeia, reparai que, antes que a vós, me odiou a Mim. Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que é seu, mas, como não sois do mundo, por isso é que o mundo vos odeia” (Jo., 15, 18-19). Por este mundo que O odeia recusa-se Cristo a rezar: “É por eles que eu rogo. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me confiaste” (Jo., 17, 9).
Que mundo é então este, que se contrapõe ao mundo que Deus ama? O traço identificativo do mundo mau está no ódio que vota a Jesus e aos que O seguem. E a raiz desse ódio está no facto de não reconhecer como seus, como pertença sua, nem Jesus nem os que O seguem. O que nos remete inequivocamente para os comportamentos – que, aliás, nos é indicado na própria história de Jesus. Resulta claramente das narrativas evangélicas que foi o choque entre as atitudes e valores que Jesus preconizava e os valores e atitudes praticados e defendidos pela classe dirigente da teocracia vigente que ditou a perseguição que esta lhe moveu até à morte. Os discursos contra os escribas e fariseus em que é verberada a sua hipocrisia, o seu amor às honrarias, a sua obsessão de domínio, o seu desdém pelos mais pequenos, o apego aos privilégios, são a exegese, a contrario sensu das opções que o próprio Cristo fez quando, tentado pelo Demónio, recusou como caminhos de vida a riqueza, a fama e o poder. Os que seguem estes caminhos sentem-se ameaçados quando alguém incarna o seu contrário. Sentem que o seu mundo pode ruir. E a este mundo não podem pertencer os que escolheram seguir a Cristo, porque é o mundo do Mal.
Mas é neste mundo que têm que viver e que Jesus quer que vivam: “Não te peço que o retires do mundo, mas que os livres do Mal” (Jo., 17, 15). Viver no mundo e não ser do mundo é o grande desafio dos cristãos que escolheram permanecer no século. Estar no mundo e não se deixar contaminar pelos seus valores é o grande desafio no plano individual. A que se junta um outro no plano cívico: agir para que a sociedade se liberte dos valores dominantes do Maligno e adira aos valores evangélicos.
O primeiro passo para o conseguir é pensar os acontecimentos à luz do Evangelho e identificar, nos comportamentos que os integram, os valores que lhes estão subjacentes. Depois, haverá que julgá-los à luz do Evangelho para em seguida agir de acordo com o juízo que se fez.
O cristão não pode ser um alienado do que se passa à sua volta. Se o for, o testemunho que der do seu cristianismo será um testemunho pequenino. A tarefa de salvar o mundo – o mundo que Deus ama – é grande demais para dispensar o esforço de cada um. E esse esforço tem de ultrapassar em preocupação o plano meramente individual, e alargar-se tendencialmente às dimensões do universo.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 20 de julho de 2009

UM OLHAR DE CRIANÇA

Um dia, era eu adolescente, tinha caminhado toda a tarde à beira do mar. Era Inverno, e no céu infinitamente deserto, despertavam as primeiras estrelas. Possivelmente estavam mortas há milhares ou milhões de anos, mas a sua luz continuava a chegar até mim. Em breve eu próprio estaria morto, e um pouco mais tarde – porque diante do nada, mais ainda do que diante de Deus os milénios parecem dias – um pouco mais tarde a Terra estaria morta e as estrelas mortas continuariam a brilhar. Gelado, com o coração gelado, subi para o carro que levaria de regresso à cidade. Tinha resolvido suicidar-me. Para quê esperar? Para quê deixar ainda o nada invadir-me como uma tortura? Que me leve já e para sempre.
Então, senti que alguém olhava para mim. Era uma pequenita de quatro ou cinco anos. Os seus olhos estavam cheios de amizade. Ela sorriu. E eu compreendi que a luz de um olhar – o oceano interior dos olhos – era mais vasto do que o nada salpicado de estrelas, e que havia nessa luz uma promessa, E QUE ERA PRECISO VIVER.


Patriarca Atenágoras

DO MATRIMÓNIO CRISTÃO

Apesar de todo o empenho na defesa da família e das preocupações patentes na pastoral familiar, não podemos furtar-nos à impressão de que, para a Igreja, o estado de casado é uma situação de vida de grau inferior. O que mais se exalta é a vida consagrada que se vive adentro dos muros do convento nas ordens religiosas. E no mundo, àqueles que se destinam a presidir às comunidades cristãs impõe-se como dever a guarda do celibato, e consequentemente a renúncia à vida conjugal. De resto, no calendário litúrgico, que atribui a cada santo um qualificação catalogante, encontramos mártires, doutores, confessores, virgens e... viúvas, como se fosse condição para ascender à santidade a rotura do vínculo conjugal por morte do cônjuge.
É verdade que foi o próprio Cristo quem apontou o celibato como caminho de vida, e o valorizou quando ele é assumido por amor do Reino de Deus (Cf. Mt., 19, 12). Mas não deixa de ser curioso que o tenha feito respondendo aos Apóstolos que, assustados com as exigências do Matrimónio, que o mesmo Jesus enunciara, concluíram que “assim sendo, é melhor não casar” (Mt., 19, 10). O que logo indicia que o caminho do casamento não representa na vida cristã uma via de menor esforço...
É pena que a reflexão sobre o Matrimónio cristão se fixe quase exclusivamente neste texto, quando a teologia do Sacramento tem a sua fonte mais rica no texto de S. Paulo aos Efésios, cap. 5. vv. 21 a 33. Também nele se enunciam os deveres dos esposos – não já apenas os decorrentes da indissolubilidade (como no texto citado de Mateus), mas principalmente a grandeza do amor mútuo, que é um amor único, pois colhe a sua grandeza no facto de representar na Terra a união de Cristo com a Sua Igreja. Marido e Mulher devem amar-se como se amam Cristo e a Igreja, unidos por um vínculo que nada nem ninguém pode quebrar.
Diz-se, e com razão, que o matrimónio é um contrato e acrescenta-se que, ao contrário de outros contratos, este não pode dissolver-se pela vontade das partes. É pobre e dificilmente compreensível. Mais uma vez o juridismo inquina a realidade, infestando-a com o seu efeito redutor. A unidade do casamento cristão não deriva do seco assentimento prestado pelas partes contratantes. O assentimento prestado configura certamente a realidade jurídica de um contrato, mas gera, para além dele, uma unidade física, bem patente aliás na expressão que vem já do Velho Testamento, e que Cristo reiterou: “serão dois numa só carne” (Mt., 19, 5): dificilmente esta expressão se pode reconduzir à imaterialidade de um acto de vontade revogável ad nutum. Falta-lhe, porém, o fundamento. E é S. Paulo quem o aduz no texto citado: os esposos representam na Terra a união de Cristo com a Sua Igreja que de jurídico não tem nada e de físico tudo tem: a Humanidade constitui-se em Igreja de Cristo pela comunhão da vida do mesmo Cristo que lhe é transmitida pelo Baptismo.
Esta é a grandeza do Matrimónio cristão, e a sua beleza na economia da salvação. Não se faz teologia falando da beleza dos mistérios e hierarquizando-os. Mas apetece-me dizer que, por aquilo que representa, o Matrimónio é realmente um Sacramento particularmente belo – que entusiasmou o próprio Paulo quando, a terminar o texto citado, não se inibe de exclamar: “Este mistério é grande!” (Ef., 5, 32).
J.

Tomaz Ferreira

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O TRABALHO DOS HOMENS

O trabalho como valor é uma realidade relativamente recente. Em tempos idos, a estratificação social de “clero, nobreza e povo” era a este, a “arraia miúda” que estava cometido o trabalho. Os nobres dedicavam-se às artes da guerra e aos prazeres da caça – embora na guerra a sale besogne tocasse, evidentemente à arraia miúda... O clero, para além da cura de almas, entregavam-se também ao estudo: nos tempos medievais a ciência recolheu-se aos conventos e era ali que se recrutavam os mestres que nas universidades aprofundavam e transmitiam o saber.
Não que o trabalho, na sua expressão manual, estivesse ausente da tradição cristã. Jesus trabalhou. Era filho de um carpinteiro, e é como tal que os seus contemporâneos o apontam quando, logo no início da sua vida pública, vai pregar a Nazaré (Cf. Mc., 6, 3). Os primeiros discípulos que recruta para depois fazer deles seus apóstolos são pescadores (Cf. Mt., 4, 18 e segs.). S. Paulo gloriava-se de ganhar o sustento próprio com o trabalho das suas mãos para não pesar às comunidades em que desenvolvia a sua actividade apostólica.
Mais perto de nós, temos o exemplo de S. Bento, o patriarca dos monges do Ocidente. No caminho de perfeição que traçou para os seus seguidores, o trabalho inscrevia-se como elemento essencial. Ora et labora – reza e trabalha – foi a divisa que propôs aos membros da sua ordem.

Nos tempos modernos, sobretudo com a revolução industrial, o trabalho impôs-se na sociedade como um valor. O que era apenas considerado como servidão ganhos foros de direito. São muitos os Estados que nas suas Constituições inscreveram o direito ao trabalho que, alargado no seu conceito, passou a designar toda a actividade humana.
E foi assim que também na espiritualidade cristã o trabalho se impôs como valor e caminho para a santidade. São conhecidos institutos religiosas de fundação recente que se distinguem por terem constituído o exercício da actividade profissional como caminho específico para a perfeição dos seus membros.
Finalmente, o Concílio Vaticano II, nomeadamente na Constituição Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo, esboçou de forma clara a concepção do trabalho na mundividência cristã e na espiritualidade dela decorrente. Sem dispensar a leitura integral do documento, aqui se deixam algumas das suas considerações.
“É com o seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar um a caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda. Sabemos que oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo” (GS. 67).
E temos o essencial. Por muito humilde que seja, o trabalho, todo o trabalho dos homens, é o prolongamento da acção divina: da acção criadora de Deus, da acção redentora de Cristo. Que valor maior se lhe poderia atribuir?

J. Tomaz Ferreira

QUANDO REZARDES...

E aconteceu que Jesus estava a rezar. E quando terminou, disse-lhe um dos seus discípulos:
- Senhor, ensina-nos a rezar, como também João (Baptista) ensinou aos seus discípulos. E Jesus disse-lhes:
- Quando rezardes, dizei assim:
Pai nosso que estais no Céu,
Santificado seja o Vosso nome,
Venha a nós o Vosso Reino,
Seja feita a Vossa vontade
Assim na Terra como no Céu;

O pão nosso de cada dia nos dai hoje,
Perdoai-nos as nossas ofensas
Assim como nós perdoamos
A quem nos tem ofendido;
E não nos deixeis cair em tentação,
Mas livrai-nos do mal. (Cf. Lc., 11, 1-
4)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

CORPO DE DEUS

Bate-me sempre uma sensação de vazio quando visito uma igreja sem sacrário. O sacrário é, como todos sabem, a caixa em que se guardam as hóstias consagradas, que a fé cristã professa serem o Corpo de Cristo escondido nas aparências do pão.
A presença de Cristo na hóstia consagrada pertence indiscutivelmente ao depósito da revelação e é desde sempre objecto da fé de toda a Igreja. Tem como base as narrativas evangélicas da Última Ceia em que Jesus “tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos dizendo: tomai e comei, isto é o meu corpo” (Mt., 26, 26). Nem os Apóstolos se devem ter espantado com tão estranho gesto. Muito tempo antes, após a multiplicação dos pães, já Jesus misteriosamente anunciara: “O meu corpo é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e eu nele.” (Jo., 6, 55-56) A crueza destas palavras levou muitos discípulos a abandonarem o Mestre que, perante a deserção, não teve palavras ou gestos que adoçassem o que dissera. Placidamente, limita-se a perguntar aos que ficaram: “Vós também quereis ir embora?” (Jo., 6, 67) Não quiseram, e em resposta aconteceu a primeira confissão de Pedro: “A quem havemos de ir? És tu que tens palavras de vida eterna.” (Jo., 6, 68)
Na festa do Corpo de Deus, a Igreja inteira renova esta profissão de fé daquele que Jesus constituiu alicerce da sua Igreja. É esse o significado da procissão que, por determinação canónica se realiza em todas as comunidades cristãs, propondo o Senhor Jesus, presente na hóstia consagrada, à adoração dos seus fiéis.

Isto dito, ocorre-me que seria redutor a Eucaristia apenas como um modo de presença real de Jesus no meio dos seus. Seria limitara Eucaristia ao seu lado estático: o Cristo presente nos sacrários das igrejas é o Cristo que aguarda a companhia dos seus fiéis, que lhes diz que não estão sozinhos, que os conforta nas suas desventuras. Mas esse Cristo resulta da celebração do mistério eucarístico. É na celebração eucarística que o pão e o vinho se mudam em corpo e sangue de Cristo, repartidos, como na Última Ceia por aquele que a fé reuniu à volta da mesa do banquete eucarístico.
Mas esta celebração da Eucaristia é muito mais do que isso. S. Paulo, na primeira epístola aos coríntios, deixou-nos aquele que é, cronologicamente, o primeiro testemunho escrito sobre a Eucaristia. No essencial corresponde quase literalmente ao que consta das narrativas evangélicas, que, no entanto, precede no tempo. Mas acrescenta com toda a clareza: “Todas as vezes que comeis este pão e bebeis este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha”. (1Cor., 11, 26) E aqui temos a chave da grandeza da Eucaristia, o seu aspecto dinâmico. Quando celebramos a Eucaristia, não nos limitamos a tornar Jesus presente sob as aparências do pão e do vinho. Quando celebramos a Eucaristia, repristinamos o mistério da nossa redenção realizada pela morte e ressurreição de Cristo. Não rememoramos apenas a morte do Senhor: actualizamos a sua função redentora, e é isso que nos permite juntar à força essencial dessa Redenção. Os micro-grãos de redenção constituídos por todas as boas obras que vamos fazendo, por todas as penas que vamos sofrendo. O nosso trabalho, o nosso sofrimento, o bem que fazemos aos outros, as lutas que travamos pela justiça e pela verdade, tudo isso, unido ao sacrifício de Cristo ali presente tem força de redenção e vai completando a Redenção do mesmo Cristo, acrescentando-lhe aquilo que lhe falta ainda (Cf. Col., 1, 24). Porque a Redenção continua em marcha “até que Ele venha”.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 8 de junho de 2009

MAS AS CRIANÇAS, SENHOR...




Filhos atormentados, de pais separados,
estais na encruzilhada de caminhos que divergem,
lugares de encontro dos corações, durante a noite.
Sois os laços que não podem ser desfeitos, as carnes que não podem ser desunidas.
Sois o vosso pai e a vossa mãe, que, em vós, se não podem divorciar,
e sois o seu amor que sobrevive, enquanto viverdes.
Sois “eles”, para sempre casados.

Filhos abandonados, de pais desconhecidos,
sois os rostos de pais e mães, a vossos olhos sem rosto,
flores frescas, sem nome, em bem organizados herbanários.
Sois vidas nascidas de desejos sem limites,
mas preenchendo, os desejos de Deus,
sois seus filhos, mais que outros ainda, porque sois corações desocupados,
disponíveis para o Seu Amor de Pai.

Se quiserdes, filhos abandonados,
o Pai “educar-vos-á”, como seus filhos queridos,
pois Ele arranjou um lugar muito grande para vós,
sem ser disputado por pais que tudo sabem,
pensando, muitas vezes, fazer melhor que o Pai da vida.

Filhos atormentados,
Filhos abandonados,
VIVEI!
Michel Quoist, Falai-me de Amor, ed. Paulistas, p.174

domingo, 31 de maio de 2009

ANO LITÚRGICO – HISTÓRIA DA SALVAÇÃO

Escrevo em dia de Pentecostes. Eu gosto da Festa do Pentecostes. Considero-a como sendo, de certo modo, a minha festa, melhor dizendo, a nossa festa, porque no Pentecostes se celebra a epifania da Igreja – é quase o aniversário do seu nascimento.
Contam os Actos dos Apóstolos que, encontrando-se os discípulos, depois da Ascensão do Senhor Jesus, reunidos todos no mesmo lugar, se ouviu um grande estrondo, e o Espírito Santo desceu sobre eles sob a forma de línguas de fogo, e começaram a falar várias línguas, ou melhor, que, entre a multidão que se juntou, cada qual os ouvia falar a sua própria língua. É neste contexto que, pela boca de Pedro, se faz ao mundo o primeiro anúncio de Jesus morto e ressuscitado como salvador de todos os homens. Era a Igreja a manifestar-se aos homens como portadora da mensagem de salvação que Jesus trouxera. E o número dos que acreditaram aumentou. E foi aumentando sempre, primeiro em Jerusalém e na Palestina, depois até aos confins do Império Romano. E ao longo dos séculos, a palavra da salvação continuou a percorrer os continentes à medida que eles eram trazidos à luz do conhecimento pelos descobridores, e continua a ser anunciada com os efeitos anunciados por Jesus: “o que acreditar e for baptizado, será salvo” (Mc., 16, 16).

O Pentecostes fecha um ciclo de grandes festas cristãs: foi o Natal, foi a Páscoa, foi a Ascensão. Natal e Páscoa são precedidos de tempos que têm um nome litúrgico: antes do Natal vêm as quatro semanas do Advento e a Páscoa é precedida pelo chamado tempo da Quaresma. A generalidade dos cristãos sabe que o Advento é um tempo de preparação para o Natal, como a Quaresma é um tempo de preparação para a Páscoa. O tempo que se segue ao Pentecostes não tem liturgicamente um nome especificante: designa-se prosaicamente por “tempo comum”, e não se lhe aponta nenhuma finalidade específica em termos de preparação para.
Porém, um olhar atento para o desenrolar do ano litúrgico pode desvendar-nos o sentido riquíssimo deste tempo comum do ponto de vista cristão. Se bem observarmos, veremos que o ano litúrgico representa e reproduz a história da salvação, que é como quem diz a história do mundo, segundo o desígnio da Deus. O tempo do Advento representa os séculos que precederam a vinda de Jesus, os séculos de espera da criação e do homem por aquele que havia de vir trazer ao mundo a salvação, isto é, realizar o desígnio salvífico de Deus a seu respeito. No Natal celebramos o nascimento de Jesus, isto é, a chegada do salvador prometido e o início da obra de Redenção do mundo que Deus idealizara. A Quaresma representa a vida pública de Jesus, o tempo do seu anúncio da vinda do Reino de Deus, da Sua manifestação aos homens como enviado de Deus e, mais do que apenas enviado, Filho de Deus. Na Páscoa celebramos a consumação da obra redentora de Jesus, consubstanciada na sua morte na cruz e coroada na Ressurreição que marca o seu triunfo sobre a more e, consequentemente, a fiabilidade da salvação que prometera aos que aceitassem a sua mensagem. Até à Ascensão, a liturgia alegra-se em Jesus já ressuscitado, mas a conviver ainda com os seus, a confiar-lhes a missão de anunciar a Boa Nova e a prometer-lhes a vinda do Espírito Santo para seu conforto. A festa da Ascensão celebra, digamos, o regresso de Jesus ao seio do Pai.
Com o Pentecostes inicia-se a última fase da história da salvação – os tempos que vivemos e que se prolongarão até à segunda vinda de Cristo. São os tempos em que Jesus continua a operar na História através dos cristãos, os membros do seu Corpo Místico, a quem cabe perpetuar no mundo a presença de Jesus e continuar a sua obra de redenção que se consumará quando Deus for “tudo em todas as coisas” (1Cor., 15, 28). Então estará consumada a História, construída que foi a Jerusalém Nova, a Cidade de Deus.

J. Tomaz Ferreira

domingo, 17 de maio de 2009

C R I S T O – R E I


“Cristo fez-se por nós obediente até à morte e morte de cruz.
Por isso, Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome,
Para que, ao nome de Jesus, todos os joelhos se dobrem
No Céu na Terra e nos Infernos.
E toda a língua confesse, para glória de Deus Pai,
Que Jesus Cristo é o SENHOR.”

S. Paulo, Epist. Aos Filipenses, cap. 2. vv. 8-11.

sábado, 16 de maio de 2009

O P R I M A D O D O H O M E M

Aprendemos na história que a passagem da Idade Média para a Idade Moderna foi marcada por duas revoluções que transformaram o mundo. A primeira, a revolução coperniciana, que transferiu o centro do cosmos da Terra para o Sol. Piamente se pensava que a Terra era o centro do mundo e que à sua volta tudo girava. As observações de Galileo e de Copérnico (um clérigo polaco) desfizeram a ilusão e fzeram saber que não é o Sol que gira à volta da Terra, mas a Terra que gira à volta do Sol. A segunda, foi a revolução humanista que domina todo o grande movimento literário, artístico, filosófico e religioso do Renascimento, e que, à visão medieval de um mundo centrado em Deus, contrapõe a visão de um mundo centrado no homem: o teocentrismo medieval foi substituído pelo antropocentrismo moderno.
A ideia tem vindo a fazer o seu caminho, com altos e baixos, e, embora tenha funcionado como linha orientadora de fundo dos movimentos que marcam o desenvolvimento histórico até aos nossos dias, é abusivo pensar que ela esteve sempre presente de forma consciente nos protagonistas que os iniciaram, e casos tem havido que a intenção inicial desembocou no resultado oposto àquele que era suposto ser atingido. Um caso típico é o da Reforma luterana que, iniciada para emancipar o homem da autoridade da Igreja, acabou por proclamar a sua sujeição ao arbítrio do Príncipe em matéria de religião.
Seja como for, o Concílio Vaticano II pôde assumir que “tudo quanto existe sobre a Terra deva ser ordenado em função do homem como seu centro e seu termo”; e constatar que “neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não crentes” (cf. Gaudium et Spes, 12).
Mas este princípio, que levou séculos a amadurecer na caminhada da Humanidade, foi claramente enunciado por Jesus, quando taxativamente afirmou: “O Sábado foi feito para o homem, e não o homem para o Sábado” (Mc., 2, 27). Para perceber o alcance desta proposição, é bom lembrar que o Sábado era um dia sagrado, e o dever de respeitar o descanso sabático era, senão o primeiro e maior, certamente dos primeiros e maiores deveres impostos por Deus, pelo menos na interpretação rabínica do tempo. Dizendo o que disse, Jesus subordinou ao homem o que havia de mais sagrado. Dificilmente se poderia encontrar forma mais eloquente de proclamar o primado do homem. E os cristãos dos primeiros séculos entenderam-no bem. O seu sentir foi claramente expresso por S. Ireneu quando não se inibiu de escrever: “A glória de Deus é o homem vivo”.
Quer isto dizer que na actuação da Igreja foi sempre tido em conta este primado do homem? De modo nenhum. Fenómenos como o da Inquisição demonstram exactamente o contrário. Na Inquisição proclamava-se com actos o primado da doutrina (ou, se quisermos, da Fé) sobre o Homem. Ao arrepio do Evangelho.
Ainda hoje, mau grado a solene profissão de fá no homem proclamada pelo Concílio Vaticano II, a Igreja esquece no seu proceder o primado do Homem. Cito, a título de exemplo, o caso dos padres que abandonam o sacerdócio e pretendem casar. Para que possam celebrar o Sacramento do Matrimónio, precisam duma dispensa de Roma (semelhante à que se pede para celebrar matrimónio entre parentes próximos). Paulo VI concedia essa dispensa aos que a pediam e exigia-lhes como paga que abandonassem o ministério sacerdotal. Com João Paulo II isso acabou. A Santa Sé nega-se a dar a dispensa, negando do mesmo passo implicitamente o primado do homem. No fim de contas, a lei do celibato não é comparável em importância e dignidade à Lei do Sábado. Mas parece que, segundo João Paulo II, embora o Sábado tenha sido feito para o homem, parece que aqui, foi o homem que foi feito para o celibato...
J. Tomaz Ferreira

domingo, 10 de maio de 2009

Quando queres desistir... PENSA

Se o homem não sabe caminhar, que não largue a mão de sua mãe.
Se receia cair, que permaneça sentado.
Se receia o acidente, que deixe o carro na garagem.
Se receia o assalto, que permaneça na trincheira.
Se receia que o para-quedas não se abra, que não salte.
Se receia a tempestade, que fique ancorado no porto.
Se receia não saber construir a sua casa, que a deixe em projecto.
Se receia enganar-se no caminho, que fique em casa.
Se receia o esforço, o sacrifício e o futuro, que renuncie, pois, a viver, e que o medroso e ensimesmado, se feche no seu casulo...

Então...,
Poderá talvez sobreviver, mas não será um homem, pois é próprio do homem poder, racionalmente, arriscar a vida.
Poderá fingir amar, mas não saberá amar, pois amar é ser capaz de querer arriscar a sua vida pelos outro, por um outro.
Poderá gerar, mas não será nem pai nem mãe, pois ser pai ou mãe é, como a semente na terra, aceitar o supremo risco de morrer, para que nasça a espiga.
Michel Quoist, Falai-me de Amor, pag. 136 (ed. Paulinas)

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Em Louvor de Maria

Quando chegou o tempo em que Deus resolvera realizar aos nossos olhos a sua Incarnação, teve que suscitar previamente, no Mundo, uma virtude capaz de O atrair até nós. Precisava de uma Mãe que o gerasse nas esferas humanas. Que fez então? Criou a VIRGEM MARIA, isto é, fez aparecer sobre a Terra uma pureza tão grande, que, nessa transparência pudesse concentrar-Se até aparecer como criança. Eis aqui, expressa na sua força e na sua realidade, a força da pureza, capaz de fazer aparecer entre nós o Divino. E, no entanto, a Igreja acrescenta, dirigindo-se à Virgem Maria: “Beata quae credidisti – Feliz de Ti porque acreditaste”. É na Fé que a pureza encontra a realização da sua fecundidade.

Teilhard de Chardin, Le Milieu Divin

SÃO NUNO DE SANTA MARIA

O Papa acaba de canonizar Frei Nuno de Santa Maria, que já em 1918 o seu antecessor Bento XVI beatificara.
Convém, antes de mais, elucidar a diferença que há entre uma beatificação e uma canonização. Em ambas a Igreja reconhece a heroicidade das virtudes do sujeito. Na beatificação propõe-nas à veneração duma igreja particular e autoriza nela o seu culto público. Na canonização, o eleito é proposto à veneração e ao culto dos fiéis da Igraja universal. Uma e outra são actos administrativos da Igreja reservados ao Papa. Há um processo que corre na Cúria Romana e onde é suposto analisar-se com todo o cuidado os ditos e feitos do visado, para estabelecer se ele pode ser proposto como modelo de vida cristã a todos os fiéis.
Este modus faciendi não é de sempre. Nos primeiros tempos e durante séculos, era o povo que canonizava, e a autoridade seguia o vox populi, confiando naquilo a que se chama o sensus Ecclesiae, o sentir da Igreja, sobre cuja rectidão velava o Bispo da própria diocese. A introdução da disciplina actual teve como consequência porventura um maior rigor na apreciação de feitos e virtudes. Mas abriu as portas a uma inevitável burocratização de consequências nem sempre edificantes. Diríamos que, com ela, os santos no Céu passaram a precisar, para serem reconhecidos como tal, de ter amigos na Terra: influências na Cúria, grupos de pressão, muita propaganda, e o inevitável dinheiro que tudo inquina (não para “comprar” a canonização, mas para pagar todas as despesas que a ela conduzem). Os que não podem ou não querem socorrer-se desses meios não chegam aos altares. Como dizia aquele Prior da Cartuxa: “Nós, aqui na Cartuxa, não tratamos de canonizar santos, tratamos de os fazer. Pois se nem sequer o nosso fundador, S. Bruno, está canonizado...”

Mas falemos de S. Nuno de Santa Maria. Para todos os portugueses, ele foi o herói que, incarnando o sentir do povo, muito mais do que da nobreza, defendeu a independência do seu país contra os desígnios de Castela que pretendia, pela via dinástica, tomar posse deste Reino. Foi uma guerra de defesa em cujo desfecho teve influência decisiva o seu génio militar que, segundo os especialistas, o colocam a par dos grandes cabos de guerra cujos nomes a História guardou: foi o general que não perdeu uma única batalha. D. João I, que lhe devia o trono, fê-lo Condestável de Portugal, o primeiro dignitário do Reino, e cobriu-o de riquezas: era o homem mais rico de Portugal.
Mas o apelo do Evangelho foi mais forte que a sedução da glória ou do ter. “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo quanto tens, dá-o aos pobres, e depois vem e segue-me”, respondera Jesus ao jovem que o interrogava sobre os caminhos do Céu (Mt., 19, 21). O Condestável seguiu à letra o conselho do Mestre. Assim que se viu liberto dos laços e responsabilidades familiares, recolheu-se ao convento do Carmo que mandara construir e onde professou e desempenhou as humildes funções de porteiro, que lhe permitiam distribuir aos pobres a imensa fortuna que possuía. Ainda em vida sua, já o povo cantava:
O Grão Condestabre,
Em o seu mosteiro,
Dá-nos sua sopa,
Mai-la sua roupa
Mai-lo seu dinheiro.
Foi este exemplo de humildade e desprendimento que fixou no coração do povo a sua memória. E, após a morte, começou a ser venerado como santo. Antes da canonização, antes mesmo da beatificação, o agora S. Nuno de Santa Maria (o nome com que professou) era conhecido pelos fiéis em Portugal como o Santo Condestável, que, depois de tão bem ter defendido a sua cidade dos homens, se entregou por inteiro à construção da Cidade de Deus.


J. Tomaz Ferreira

terça-feira, 21 de abril de 2009

C ÂN T I C O D O A M O R


(S. Paulo, 1ª Epístola aos Coríntios, cap. 13, vv 1-13)

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos,
Se não tiver amor,
Sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine.
Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência,
Ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas,
Se não tiver amor,
Nada sou.
Ainda que eu distribua todos os meus bens, e entregue o meu corpo para ser queimado,
Se não tiver amor,
De nada me aproveita.
O amor é paciente, o amor é prestável,
Não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso,
Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse,
Não se irrita nem guarda ressentimento.
Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo suporta.
O amor jamais passará
Agora permanecem estas três coisas: a Fé, a Esperança e o Amor:
Mas a maior de todas é o AMOR.

domingo, 19 de abril de 2009

TÃO IGUAL A NÓS...

O que sabemos de Jesus é aquilo que nos disseram os seus discípulos, que depois da morte dele assumiram a missão de espalhar pelo mundo inteiro o anúncio da Sua mensagem, cujo ponto fulcral era, aliás, a própria pessoa de Jesus.
Personagem estranho que, sendo homem, se apresentava como Filho de Deus e que acabou por morrer condenado por blasfémia, justamente porque, ao ser julgado pelo Sinédrio reivindicou sem ambiguidades a sua qualidade divina: “és tu o Cristo, Filho de Deus bendito?”, perguntou o Sumo Sacerdote. E, sem tergiversar, Jesus respondeu: “eu sou” (Cf. Mc., 14, 61-62). No Prólogo do seu Evangelho, depois de dizer que “o Verbo era Deus” (Jo, 1, 1), João acrescenta que “o Verbo se fez homem e veio habitar entre nós” (Jo., 1, 14). Pedro, interrogado por Jesus, “e vós, quem dizeis que eu sou?” respondeu sem hesitar: “Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo” (Cf. Mt., 16, 15-16). Paulo, por seu lado, na Epístola aos Filipenses, é também taxativo: “que toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor” (Filip., 2, 11) O que não o impediu de proclamar também que Jesus é “em tudo igual a nós excepto no pecado” (Heb., 4, 15 J). Para a comunidade cristã primitiva, Jesus era simultaneamente Deus e homem.
O mínimo que se pode dizer de um homem-Deus é que ele constitui um mistério, na medida em que é muito difícil (se não impossível) para a inteligência humana conceptualizar semelhante realidade: trata-se, con efeito, de conjugar no mesmo sujeito o infinito da divindade com o finito do homem. Não admira, por isso, que nos primeiros séculos a reflexão cristã se tenha dedicado largamente à procura duma inteligência da fé
que permitisse a formulação clara dos dados do .
Como resultado desse reflexão, a Igreja fixou em termos inequívocos a realidade da natureza humana de Jesus: “Perfeito Deus, perfeito homem, com uma alma racional e carne humana” (Símbolo Quicumque). Esta é a fé católica sancionada em vários concílios (Niceia, 325; Éfeso, 431; Calcedónia, 451) que de vez arrumou a inteligência ortodoxa da fé primitiva.
É este Cristo, homem verdadeiro, com todas as limitações do homem, que me apraz contemplar quando medito os passos da Sua Paixão. E apraz-me contemplá-lo no que de mais humano a paixão nele revela. Deus e homem, Jesus deixou bem claro, no episódio das tentações, que nunca aceitaria pôr os seus poderes divinos ao serviço dos seus desejos ou necessidade humanos. Por isso o encontramos possuído duma angústia mortal no Jardim das Oliveiras, ante a perspectiva da morte. Como qualquer de nós. “Começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes então: a minha alma está triste até à morte; ficai aqui e vigiai comigo” (Ma.,26, 38)Como qualquer mortal possuído da angústia não desdenha procurar algum consolo na companhia dos que lhe querem bem. E reza: “Pai, se é possível...” (cf. Lc., 22, 44). Como também nós rezamos quando confrontados com um problema que está acima das nossa forças superar. E também Ele, como nós, experimentou a sensação de não ser ouvido por Deus, não coincidir o que Ele desejava com a vontade de Deus. Mas “faça-se a Tua vontade”(Mt., 26, 39).
Mais tarde na cruz, já próximo da morte, pronunciou as talvez mais misteriosas palavras
que saíram da sua boca: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” (Mt., 27, 46). Este abandono de Deus que por vezes sentimos quando na nossa vida o Céu parece mudo ante o nosso sofrimento e surdo às nossas preces, Jesus experimentou-o também, a tal ponto que, por uma vez, não se dirige ao Pai, mas clama por Deus. Igual a nós.
Na verdade, Ele assumiu por inteiro a nossa humanidade, as nossas fraquezas, as nossas limitações. Do que é humano, só não quis partilhar aquilo que realmente degrada o homem – o pecado.
J. Tomaz Ferreira

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A CRISTO NA CRUZ

A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que para receber-me estais abertos
E por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos eclipsados,
De tanto sangue e lágrimas cobertos
Que para perdoar-me estais despertos
E por não devassar-me estais fechados.

A vos, pregados Pés por não fugir-me,
A vós, Cabeça baixa por chamar-me,
A vós, Sangue vertido para ungir-me,

A vós, Lado patente quero unir-me,
A vós, preciosos Pregos, quero atar-me
Para ficar unida, atada e firme.
Anónima (Sec. XVIII)

domingo, 5 de abril de 2009

EM TEMPO DE PAIXÃO...

Salve, cabeça de sangue, coroa de espinhos, cabeça ferida, quebrada, espancada, coberta de escarros.
Salve, esse Teu rosto que traz o sinal da morte já perdeu a juventude, mas os Altíssimos adoram essa palidez.
Espancado, morto por culpa dos nossos pecados, o Teu rosto ainda brilha aos olhos do pecador!
Sou culpado, mas perdoa-me; estou perdido, mas não me rejeites; à hora da Tua morte inclina um pouco para mim o Teu rosto, deixa-o repousar no meu colo.
Quando eu morrer, corre para mim, deixa que nesse momento o Teu sangue me proteja.
Partirei quando Tu quiseres; mas Tu, Senhor, está lá! Abraçar-te-ei nessa cruz que me salvou!

S. Bernardo de Claraval

quinta-feira, 2 de abril de 2009

H O N E S T TO G O D

Em texto anterior, sublinhei o carácter comunitário da Eucaristia, baseando-me no Cânon 906 do Código de Direito Canónico onde se exige, para a celebração da Missa, que o sacerdote seja acompanhado por ao menos um fiel.
Por amor da verdade, devo acrescentar que a matéria não é pacífica, pelo menos no que toca à interpretação da norma canónica. Um ilustre jurista da Universidade de Navarra, comentando o dito cânon, aponta como razão para a exigência da assistência de ao menos um fiel, a precaução a ter com a saúde do sacerdote celebrante: “A razão do cânon (escreve) não é a necessidade de participação dos fiéis (...) mas a possibilidade de que a sua se visse alterada por alguma contingência que afectasse o seu pleno acabamento devido à saúde (do sacerdote) etc” E invoca o cânon 904 onde se recomenda aos sacerdotes a celebração diária da Missa.
Com o devido respeito, permito-me discordar, e mantenho-me na minha: a Eucaristia é uma acção comunitária por excelência, em que a comunidade toda, representada pelo seu presidente (o chamado celebrante) renova o mistério da Ceia do Senhor, cumprindo o que Ele expressamente ordenou: “Fazei isto em memória de Mim”.Seria, aliás extraordinário que fosse a Eucaristia a não revestir carácter comunitário, quando na celebração de todos os outros se exige a presença da Comunidade, e é muito claro que é para a Comunidade que eles são celebrados. Não vou elencar os sacramentos todos. Que o leitor o rememore e verifique que nenhum deles pode constituir acção isolada de um celebrante. Então, e a Eucaristia, sacramento da partilha do pão, havia de ser a excepção de um sacramento celebrado sem comunidade? A mim parece-me absurdo.
A mim, que não a outros. E vale a pena procurar o porquê. É que nestas minudências concretas da vida da Igreja espelham-se princípios que raramente se discutem ou se explicitam, mas que são a explicação de muito do que se faz ou ordena ou recomenda – mesmo em sede de Direito Canónico.
Convivem na Igreja duas linhas eclesiológicas que dão origem a procedimentos diversos na lógica dos princípios de que partem. E esses princípios são dois: o princípio do Chefe, e o princípio da Comunidade. Os que baseiam a Igreja no princípio do Chefe dizem em suma que “no princípio era o chefe”, e ao chefe tudo se refere, tudo dele promana e é em função dele que tudo deve organizar-se. É deste princípio que deriva a recomendação do Código para que os presbíteros celebrem Missa diariamente. Pior do que isso, é deste princípio que deriva toda a organização e as práticas prevalecentes na vida da Igreja – a importância do Papa e a sua intervenção na vida de toda a Igreja, desde a nomeação dos Bispos até ao exercício de um magistério erigido muitas vezes a dimensões que na realidade não tem.
Depois há o princípio da Comunidade. Aqui se dirá que “no princípio era a Comunidade”, como disseram, segundo narram os Actos dos Apóstolos, os Doze, quando se tratou de escolher o substituto de Judas: Pedro estava lá e podia designar: mas não quis e foi com os votos da comunidade que a escolha recaiu sobre Matias; como foram os votos da Comunidade que designaram aqueles que haviam de ser os primeiros diáconos.
Aliás a história da Igreja é fértil em acções que denunciam bem o primado da comunidade: os bispos e os presbíteros só o eram depois da imposição das mãos que garantiam a sucessão apostólica – mas a imposição das mãos era feita àqueles que a comunidade elegia. E não será inútil recordar que o Concílio de Calcedónia declarou nulas as ordenações de bispos e presbíteros que não fossem apresentados por uma comunidade... O Concílio de Calcedónia não concebia uma Eucaristia celebrada sem comunidade.
Os dois princípios – do Chefe e da Comunidade – convivem na Igreja de Deus. Por mim, penso que o princípio da Comunidade vai prevalecer um dia para que a Igreja verdadeiramente se renove.
J. Tomaz Ferreira

terça-feira, 24 de março de 2009

M I N U D Ê N C I A S

Há na vida da Igreja pequenas normas, pequenos procedimentos, certas maneiras de fazer que na maior parte dos casos nos passam despercebidos, a que não atribuímos importância, e que, no entanto, se revelam muitas vezes fundamentais para a inteligência da Fé que se exige num cristianismo adulto.
No Código do Direito Canónico, fui descobrir, por entre aquela floresta de normas que regulam a vida da Igreja, uma que eu conhecia, é certo, como praxe, mas que não pensava ter sido vertida em Cânon com direito a figurar no Corpus das leis da Igreja.
Trata-se do Cn. 906, que reza assim: Sem causa justa e razoável, não celebre o sacerdote o sacrifício eucarístico sem a participação de pelo menos um fiel.
Por mim, vejo, nesta prescrição de “ao menos um fiel presente”, a prova provada de que a Eucaristia não é nunca obra de um homem só, ainda que dotado da unção que lhe confere o sacerdócio ministerial. A Missa é por definição (e sempre foi) obra do Povo de Deus, no exercício mais alto e sublime do seu sacerdócio régio que lhe foi conferido com a unção baptismal.
Uma apreciação superficial do rito da Missa (não esqueçamos que lex orandi, lex credendi - ou seja que assim se reza como se crê, a oração é um reflexo da fé) aponta indiscutivelmente para uma acção comunitária que só tem sentido quando celebrada no contexto duma comunidade. Desde logo porque a Eucaristia é uma refeição, e é sabido que, no nosso contexto civilizacional, a refeição é por excelência um momento de convívio e de partilha. Por isso à Eucaristia se chamava, no princípio, a partilha do pão e do vinho. Há depois, no rito ou ritos em que se fixou a celebração eucarística, uma estrutura de diálogo que não tem sentido algum se debitada a solo. Já não falo da celebração da Palavra de Deus que antecede sempre a celebração eucarística propriamente dita, e onde a Palavra de Deus é proclamada. Como é evidente, não faz sentido que alguém proclame para si próprio o que quer que seja...
Depois, quando se entra na celebração eucarística propriamente dita, a estrutura de diálogo acentua-se. Note-se que o celebrante “não se atreve” a iniciar o rito eucarístico propriamente dito sem pedir a anuência da comunidade, que explicitamente convida para a celebração, quando diz “Demos graças ao Senhor Nosso Deus” (de notar que Eucaristia significa exactamente acção de graças). Só depois de a assembleia (a Igreja) exprimir a sua anuência – “é nosso dever, é nossa salvação” – o celebrante inicia a grande oração eucarística.
Portanto, é redutor dizer que a Missa é celebrada pelo padre, e completamente errado dizer que os fiéis assistem à Missa. Não assistem: participam. Ou melhor: é toda a comunidade, presidida por um ministro sagrado, que oferece ao Senhor o sacrifício da nossa Redenção. Diz-se que o celebrante age como representante de Cristo: e é verdade,
se pensarmos que o Cristo que ele representa não é tanto o homem Jesus limitado na sua humanidade histórica, mas o Cristo místico, que fez da Igreja, comunidade dos crentes, a sua humanidade de acréscimo, o seu Corpo místico que prolonga na história o mistério da Incarnação.
É o que se me impõe como evidente na exigência de representação da comunidade aquando da celebração da Eucaristia. De modo que se não pode haver Eucaristia sem ministro sagrado que a presida, também a não pode haver sem comunidade que por ele seja presidida.
J. Tomaz Ferreira

quinta-feira, 19 de março de 2009

DA NOSSA INCULTURA

Nos últimos tempos, tem sido frequente assistirmos ao espectáculo (sempre edificante, diga-se de passagem) da Igreja Católica a pedir desculpa por erros e dislates do passado. Abstenho-me de emitir opinião sobre alguns, pois neles mais se me figura não uma real necessidade de penitência que se exprime, mas uma perversa vontade, de auto-flagelação. Mas isso são contas de outro rosário que não vale a pena desfiar agora, que a nossa intenção se orienta noutro sentido.
A sociedade actual, a mentalidade actual é ágil a apontar à Igreja defeitos do passado e culpas no presente, e a pedir-lhe contas pelo mal que fez e pelo bem que deixou de fazer. E é bem que a Igreja se sinta escrutinada também pelos homens, para que mais fielmente possa servir ao seu senhor e último escrutinador que é Deus por tudo quanto fez ou deixou de fazer. Mas para a justiça ser completa, também se-lhe deveriam assacar méritos que teve, e, vamos lá, reparar injustiças de que foi vítima.
Vem isto a despropósito dum problema muito actual do país que, parece, tem repercussões na economia: o problema da educação. Somos um país atrasado porque em matéria de educação não fomos capazes de acompanhar os outros.... Inquestionável na sua factualidade, o caso mereceria que se lhe descobrissem as causas. Só que, desnudá-las, não será exercício agradável para muitos no poder.
Para perceber a nossa incultura e atraso, há que remontar aos tempos gloriosos do Marquês de Pombal e à sua histórica decisão de banir dos reinos de Portugal a Companhia de Jesus – sem se aperceber (ou apercebendo-se : afinal, como grande estadista que era suposto ser, teria de sopesar as consequências de qualquer mínimo gesto de governação, pois governar é acima de tudo prever) que do mesmo passo bania do país o exercício de ensinar, e consequentemente a educação no sentido que hoje lhe atribuímos.
Entre as muitas “malfeitorias” que se podiam atribuir aos jesuítas, estava o terem criado uma rede de ensino verdadeiramente notável para a época e que tinha a grande vantagem de não custar ao erário público um único ceitil.. Contava essa rede com nada menos que “26 colégios gratuitos, uma Universidade (Évora) e 2 escolas. Vários desses colégios tinham numerosos alunos: S. Paulo /(Braga) 2.000, S. Antão-o-Novo (Lisboa) 1800, Colégio das Artes (Coimbra) 2.000. A Universidade de Évora era frequentada por 1.600 alunos”. (Cf. Brotéria, vol. 168 – 1, p. 53). Era muito para o Portugal de meados do século XVIII. Destruir tudo aquilo equivaleria pouco mais ou menos a deitar a baixo quase a cem por cento a rede de ensino nacional. E não havia possibilidades de repor – por falta de mão de obra.
Aliás, um século depois, o Mata Frades, ao expulsar do País todas as Ordens Religiosas veio ainda agravar o problema – de que todos ainda nos queixamos.
Dizem e é verdade que o nosso subdesenvolvimento económico tem tudo a ver com a incultura grassante. É triste, mas não deixa de ser curioso, que na raiz deste mal cuja verdadeira dimensão só agora estamos a medir, esteja uma medida que em primeira mão se dirigia contra a Igreja.

J. Tomaz Ferreira

sexta-feira, 13 de março de 2009

NO PRINCÍPIO...

Consta que em certas escolas evangélicas dos Estados Unidos ainda hoje é proibido ensinar as teorias de Darwin sobre a evolução das espécies. Uma interpretação literal da narrativa bíblica das origens leva-os a perfilhar um criacionismo absoluto. Segundo eles, o mundo todo e tudo quanto nele existe foi feito por Deus directamente e do modo como o texto sagrado refere. Assim, a criação do mundo levou seis dias; Deus fez por si todas e cada uma das espécies vegetais e animais, e o homem foi plasmado por Deus a partir do pó da terra...
É evidente que uma tal leitura da Bíblia é desmentida não apenas pelas teorias de Darwin, mas por todos os dados adquiridos pela ciência no estudo do universo: os seis dias da Bíblia transformou-os a ciência em milhares de milhões de anos...
Que dizer então: é falso o que a Bíblia nos ensina? De modo nenhum. O que não podemos é pedir à Bíblia o que ela não é suposto fornecer. Em matéria de criação do mundo, a Bíblia ensina-nos o quê e não o como. Além do mais, a Bíblia não é um livro científico mas religioso onde se encontram as verdades que devem orientar o homem na sua caminhada terrena. De resto, se tivesse descrito a criação do mundo em termos científicos, não teria sido entendida por aqueles a quem imediatamente se destinava. Imaginemos que, em vez de dizer “no princípio criou Deus o céu e a terra”, o autor sagrado escrevia: “no princípio Deus produziu o big bang”: quem o teria entendido, se ainda hoje tantos há que do big bang nunca ouviram falar, e só uma ínfima minoria sabe em que realmente consistiu esse fenómeno primeiro?
Não. Se Cristo mandou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, também nós devemos atribuir à revelação divina o que a ela pertence, e ao engenho humano o que lhe cabe descobrir. A finalidade religiosa da Bíblia impunha que manifestasse ao homem as verdades fundamentais para orientar a sua conduta de vida e perceber a sua relação com Deus. Por isso mesmo, ensina que o mundo todo é fruto dum acto livre de Deus que do nada fez surgir o ser; que tudo quanto Deus fez é bom e que o mal existente no mundo não é obra de Deus – o pecado original (desobediência do homem a Deus) aparece no texto bíblico como elemento explicativo da inegável existência do mal; que, no conjunto da criação, o homem é um ser muito especial (a sua criação é precedida duma deliberação pensada – “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” –) e se em toda a criação é possível encontrar um reflexo de Deus, no homem está impressa a imagem desse mesmo Deus; por isso ele á constituído senhor da criação que deve dominar, porque foi para ele que Deus a empreendeu.
Será que o facto de não ter sido Deus a plasmar todas e cada uma das espécies as subtrai à acção criadora de Deus? O velho e esquecido e sensato S. Tomás de Aquino ensinou que no mundo Deus não age directamente mas através das “causas segundas”. O como do aparecimento da vida e das espécies na sua diversificação, Deus confiou-o às causas segundas. Chamem a estas causas os nomes que quiserem – acaso, grandes números, selecção natural. Pouco importa. Por elas, é sempre o mesmo Deus que continua a sua acção criadora. E é isto que a Bíblia nos ensina, centrada que está na Causa Primeira: o Deus que, no princípio, criou o céu e a terra.
J. Tomaz Ferreira

terça-feira, 10 de março de 2009

HORRIBILE DICTU

A excomunhão é a mais severa das penas eclesiásticas. O Direito Canónico reserva-a para os casos mais graves, normalmente em que há um atentado grave contra a própria comunidade. Como se sabe, o direito penal (e a Igreja tem um direito penal...) tem em vista a defesa da sociedade.
Não sendo o caso de enumerar aqui as acções para que a Igreja reserva a pena de excomunhão, podemos alinhar alguns exemplos: a apostasia, a heresia ou o cisma; a profanação da Eucaristia, a violência física contra o Papa, a consagração de um Bispo sem mandato do Papa... Está sujeito também à pena de excomunhão o aborto perpetrado... (Cf. Cn. 1398).
O efeito da excomunhão é a exclusão da Igreja: o excomungado deixa de ser reconhecido como membro da Igreja, e perde, consequentemente os direitos de que gozam os fiéis, nomeadamente, é excluído da celebração dos Sacramentos. Por exemplo, o excomungado não pode participar na celebração eucarística, e consequentemente não pode comungar, não conta com o consolo dos últimos sacramentos, nem pode ter funeral cristão.
Vem este intróito a propósito do que se passou recentemente no Brasil, onde o Bispo de Olinda e Recife decretou uma série de excomunhões. Foi a propósito de um caso sórdido duma criança de nove anos que, violada pelo padrasto, engravidou de gémeos. A família, de acordo com os médicos, que achavam que a gravidez punha em causa a vida da criança, optou pelo aborto. E foram todos excomungados – incluindo a criancinha violada, que, aliás, nem terá tido consciência do que lhe estavam a fazer: a família ter-lhe-á dito que precisava de fazer uma operação por causa duma doença que tinha na barriga.
No caso, tal como nos chegou, havia circunstâncias que, por exemplo em Portugal, fariam com que o aborto pudesse ser praticado legalmente, mesmo antes da actual lei que deixa o aborto ao total arbítrio da mulher, e contra a qual a Igreja ergueu veemente a sua voz : havia o risco de a gravidez por em risco a vida da mãe, por um lado, e havia, por outro, a circunstância de a mesma ter resultado de violação. É verdade que o Código de Direito Canónico não distingue. Mas também é verdade que em Portugal a lei foi aprovada sem que se ouvisse da parte da Igreja o mais pequeno protesto – o que configura pelo menos uma aprovação tácita.
Mas demos de barato tudo o resto, e fixemo-nos na menina. Tem nove anos. Sofre, por parte do padrasto, a infâmia duma violação. Castiga-a a natureza fazendo-a conceber numa idade em que era suposto ser impúbere. Como se tudo isso não bastasse, a Igreja, a Santa MÃE Igreja aplica-lhe a pena máxima! Que mãe é esta que assim trata os seus filhos? Onde fica, neste caso o mandamento maior, “amai-vos uns aos outros – nisto conhecerão que sois meus discípulos”?
Felizmente a teologia ensina (e não podia deixar de o fazer) que a Igreja tem duas faces que nem sempre coincidem: a jurídica e a mística. A primeira está nas mãos dos homens; da segunda só Deus é o Senhor. No caso vertente, pode um bispo desumano excluí-la da Igreja jurídica (o foro externo); mas certamente que no foro interno, aquela filha de Deus não foi expulsa da família pelo único que o poderia fazer: o próprio Deus.
Escrevo estas linhas estéreis para manifestar a minha solidariedade para com aquela inocente injustamente castigado; mas também para exprimir a minha tristeza por ver que na minha Igreja (que não renego) continua a haver pastores que se comportam como lobos,
J. Tomaz Ferreira

quinta-feira, 5 de março de 2009

CONSTRUTORES DO MUNDO


Tu podias, Senhor, ter-nos oferecido um mundo já perfeito,
Sem nada a procurar ou a encontrar,
Cidades perfeitas e pontes lançadas sobre rios “domesticados”,
Habitações construídas e estradas traçadas sobre montanhas perfuradas e aplanadas,
Grandes fábricas-paraíso, para trabalhadores satisfeitos,
Planos a aplicar, sem erros possíveis.
Mas nós somos homens, de pé, livres e construtores do Mundo

Ó Senhor, obrigado,

Porque Tu não quiseste fazer de nós executantes sem alma
De ordens vindas do Céu,
Mas responsáveis pelo Universo,
Orgulhosos criadores, sob o Teu olhar de Pai.


Michel QUOIST, Falai-me de Amor, ed.Paulistas, pag. 87.

segunda-feira, 2 de março de 2009

FALANDO AINDA DE DEUS

Num texto que ficou conhecido como MEMORIAL, descreve Pascal a experiência mística por que passou na noite de segunda-feira, dia 23 de Novembro do ano da graça de 1654, e em que acedeu à verdade que havia de nortear a sua vida até à morte ocorrida oito anos depois. É aí que proclama, logo ao entrar, as palavras decisivas do seu encontro com a Verdade: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não o Deus dos filósofos e dos sábios... o Deus de Jesus Cristo”.
É que filósofos e sábios podem concluir pela existência de Deus, podem encontrar-Lhe atributos como os da omnipotência, da omnisciência, da omnipresença. E pouco mais. S. Tomás de Aquino preconiza as três vias para o conhecimento de Deus: a da afirmação – atribuir a Deus tudo o que de bom se encontra nas criaturas; a da negação - afastar da ideia de Deus tudo o que de mau ou defeituoso se nos depara no mundo; a da eminência – elevar ao infinito o que de bom se atribui a Deus. É pouco. É pobre. No termo da reflexão dos filósofos encontra-se, quando muito, um Deus em si. Impossível lhes será determinar se e como é Deus para nós. E este é, como aliás já dissemos, o cerne do problema de Deus, quando pensado pelos homens.
Tinha, pois, razão o Apóstolo S. João quando escrevia: “A Deus nunca ninguém o viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer”. (Jo. 1, 18).
O ponto fulcral que na revelação de Deus em Jesus Cristo define a atitude de Deus face ao mundo e, nomeadamente, face ao homem, é o Amor. A filosofia chega ao Deus criador, e daí não passa a não ser em termos de pergunta sem resposta: porquê? Para quê? O que levou Deus a criar o mundo? E qual o objectivo da criação? Perante estas perguntas, a razão humana emudece, porque não consegue extrair do criado elementos que lhe permitam mais do que formular hipóteses, mais plausíveis umas do que outras, sem que nenhuma se imponha como indiscutível. De resto, no vasto mundo e no desenrolar da História abundam as ambiguidades que infirmam qualquer conclusão que quisesse aventar-se como decisiva.
É Cristo quem nos revela que é de amor a relação de Deus com o mundo, nomeadamente nas espantosas palavras que proferiu no seu diálogo com Nicodemos reportadas no Evangelho de S. João: “Deus amou de tal modo o mundo, que lhe entregou o Seu Filho Unigénito” (Jo., 3, 16). É pois à luz do amor que se deve entender toda a relação que Deus quer estabelecer com os homens. Um amor indescritível, inefável, como diria S. Agostinho. Para o traduzir em termos humanos, Cristo foi buscar a realidade que melhor traduz o amor gratuito e apresentou-nos Deus como Pai: “Um só é o vosso Pai que está nos céus, e todos vós sois irmãos” ( Mt., 23, 9). Pai é o nome por que Deus quer ser chamado pelos homens: “Quando rezardes, dizei assim: Pai nosso que estais no céu” (Mt., 6, 9).
Como estamos longe do Deus omnipotente dos filósofos cuja grandeza nos esmaga e a cujo convívio dificilmente podemos aspirar! O Deus de Jesus Cristo é um Deus presente, é um Emanuel: é um Deus connosco. Como já, com uma ponta de orgulho, escrevia o autor do Deuteronómio, referindo-se ao Povo de Israel: “Que nação haverá que tenha um Deus tão próximo de si, como está próximo de nós o nosso Deus?”(Deut., 4, 7).
Parafraseando as palavras de Pascal: Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob; não o Deus dos filósofos e dos sábios, fixado na solidão gelada da sua infinitude; mas o Deus de Jesus Cristo, que nos ama e acompanha, como um pai aos seus filhos.

J. Tomaz Ferreira

domingo, 15 de fevereiro de 2009

PARA UMA ESPIRITUALIDADE DA TERRA


Celui qui aimera passionnément Jesus
caché dans les forces qui font grandir la Terre,
la Terre, maternellement,
le soulevera dans ses brás géants
et elle lui fera contempler le visage de Dieu.


Celui qui aimera passionnément Jesus
caché dans les forces qui font mourir la Terre,
la Terre, en défaillant,
le serrera dans ses brás géants
et avec elle il se réveillera dans le sein de Dieu.
P. Teilhard de Chardin

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

FALANDO DE DEUS

Parecem-me pouco convictos os ateus dos nossos dias. Para eles, a não existência de Deus deixou de ser um dado adquirido para baixar à categoria de mera probabilidade. Postas as coisas nestes termos, fácil lhes será concordar com a possibilidade da existência de Deus. E, ao lado da frase “provavelmente Deus não existe”, não teria lógica recusarem a afirmação: “é possível que Deus exista”. Daqui a admitir que Deus existe mesmo, vai um passo que, na linha do argumento de Santo Anselmo, não passará duma decorrência necessária.
Estamos, evidentemente, no mundo da filosofia, e o Deus cuja inexistência se admite como provável e a existência como possível será sempre o Deus dos filósofos. Durante séculos deu-se como assente a possibilidade de atingir Deus apenas com a luz da razão. Muitos séculos antes de S. Tomás de Aquino ter formulado as famosas cinco vias que levariam à conclusão da existência de Deus, já Aristóteles dirimira a questão evocando, parante um mundo contingente, a necessidade duma causa incausada e de um motor imóvel. O que, pensando bem, vem dar no mesmo: a evidência do contingente postula como necessária a existência do Absoluto. E a verdade é que todos os seres que conhecemos derivam de outros seres, devem a outrem a sua existência: nenhum existe por si, nenhum tem em si a razão a razão da própria existência, que lhe foi dada por outro, que a recebeu de outro e assim sucessivamente. Até se chegar a Um que existe por si e não deve a ninguém o próprio ser, pois é ele a razão da sua própria existência: não foi causado por ninguém, e é a causa última de todos os outros. Estes são contingentes (existem, mas podiam não existir), aquele é absoluto (não pode não existir). É a este que a filosofia chama Deus. Admitir a sua existência era para os antigos uma questão de bom senso, decorrente da observação do ser contingente.
Não penso, porém, se esgote assim. Mais: nem creio que seja a existência o verdadeiro problema de Deus para o homem. Para mim, o verdadeiro problema é o da relação entre Deus e o mundo: a existência é apenas um pressuposto do problema da relação. Que importa que Deus exista, se não tem qualquer relação com o mundo? Deus existe? Seja!
E depois? Se não tem relação com o mundo, tanto faz que exista como que não exista. É indiferente.
Mas será possível que, existindo, Deus não tenha qualquer relação com o mundo? Tenho para mim que a razão que leva muitos a negar a existência de Deus não são evidências racionais que apontem para a sua inexistência e que, no meu entender, não existem de todo (muito pelo contrário); é antes o medo de que, uma vez admitida a existência de Deus, dela se vissem obrigados a deduzir algum tipo de relação que viesse influenciar as suas vidas.
E aqui me atrevo a deixar aquela que me parece a verdadeira questão – pelo menos a questão relevante: dado (ainda que não concedido) que Deus exista, que relação terá ele com o homem, que relação poderá ter o homem com ele?
J. Tomaz Ferreira

sábado, 31 de janeiro de 2009

A TODOS VÓS...

Todos vós, os que fostes ridicularizados porque gritastes que o ser humano
valia mais que as flutuações da bolsa e as economias de rendimento;

Vós, os que fostes cobertos com o manto vermelho do escárnio
porque vendestes tudo o que possuíeis para o distribuir pelos pobres;

Vós, todos os que nos precedestes no caminho da fraternidade;

Vós, todos os que fostes perseguidos porque repetistes que a igualdade
era o primeiro direito para qualquer ser humano de qualquer país e de qualquer povo
e que o primeiro dever de todo o Poder e de todo o Estado e de toda a Religião
era zelar com fervorosa integridade a fim de que cada um tivesse acesso
aos mesmos privilégios da existência;

Vós, todos os que nos precedestes no caminho da Justiça;

Vós, todos os que fostes crucificados porque acreditastes no único poder do amor,
vós todos os que fostes assassinados porque pretendestes
que a teoria das raças era uma invenção
destinada a consolidar o poder de uma casta de senhores,
vós, todos os que cantastes o Deus único
juntando à volta d’Ele todos os seus múltiplos filhos diferentes,
vós todos os que fostes atormentados porque ousastes opor o diálogo aos fuzis;

Vós todos os que nos precedestes no caminho da paz;

Vós todos, explorados sufocados por terdes alertado tanto, amado e falado,
vós todos os que caístes em tantos combates de solidariedade;

Vós sois luz sobre o caminho da Humanidade
e na nossa memória viveis para a eternidade.
Bíblia 2000, vol. 4. pag. 90.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Sinais do tempo

«Provavelmente, Deus não existe». Este é o slogan que circulou (circula?) nos autocarros de Londres pago por uma organização militantemente ateísta. Há alguns dias esta campanha começou a circular pelas ruas de Madrid.
«Deus existe» é a resposta evangélia de uma Igreja madrilena à questão levantada pela associação ateísta.
Deus anda pelas ruas da Europa laica. Pelo menos isto, uma e outra organização conseguiram fazer. O que de facto não é uma questão de menor importância. Há muito que deixámos de regular a nossa existência pela Liturgia das Horas, esse compendêndio inefável de Esperança. Por isso, pôr Deus a todas as horas por entre o nosso olhar é uma gloriosa manifestação de inteligência, que por ser europeia, neste tempo, confesso, muito me surpreendeu.
Quando tenho dúvidas sobre a existência de Deus, ou essas dúvidas persistem no tempo, mais do eu mesma permito ao tempo, porque, como sabem, há dúvidas que valem a pena que perdurem, releio S. João da Cruz e o seu maravilhoso poema, Noite Escura.
E aí, no meio da dúvida, calma e serenamente começa a nascer a palavra mágica: provavelmente, provavelmente Deus existe, depois, o provavelmente, torna-se dia a dia mais seguro e de repente, a palavra provavelmente transforma-se em certamente, é então que o certamente Deus existe triunfa, uma vez mais, no coração e na mente de uma «pobre» mulher. Até quando?
Agrada-me ver algumas cidades europeias infestadas pela dúvida. Ao menos a dúvida. A dúvida é sempre um bom passo para a inteligência transformar-se em sapiencia. Não é este o trajecto do pensamento alicerçado na razão?
O grupo dos ateus militantes da nossa esquerda não querem importar a ideia do «provavelmente Deus não existe» ou acham que a questão está mal posta?

A INDIFERENÇA APAIXONADA

Da obra ousada a minha parte é feita;
O por fazer é só com Deus.
F. Pessoa

Ao presenciar a investidura de Barack Obama como Presidente dos Estados Unidos, veio-me de imediato à memória o nome de Martin Luther King. Naquela praça, há menos de cinquenta anos, pronunciou ele um discurso histórico em que expressava o seu sonho: I have a dream. E o que sonhava Luther King? Que os homens naquele país deixassem de ser julgados pela cor da pele, para passarem a sê-lo pelos seus méritos ou deméritos.
Estava-se na América dos anos sessenta onde o esclavagismo (abolido por Abraão Lincoln) deixara atrás de si uma sociedade ferozmente segregacionista em que floresciam organizações racistas como o Ku Klux Klan que semeava terror e morte. A prisão duma costureira negra pelo “crime” de se ter recusado a ceder num autocarro o seu lugar a um “senhor” branco foi o detonador para a campanha pela igualdade de direitos que de imediato lançou e em que se empenhou um jovem pastor evangélico, de seu nome... Martin Luther King.A campanha varreu a América no meio de vicissitudes várias. Conhece-se o trágico desfecho: Luther King foi assassinado, e não há dúvidas quanto às determinantes do crime.
Parecia que o sonho de Luther King não passara disso mesmo: um sonho. É verdade que consagrou em lei a igualdade de direitos, acabando, no plano jurídico, com a discriminação racial. Mas o ambiente social continuou francamente hostil. Muitos houve que apontaram à lei o defeito de ser prematura: sociologicamente o país não estava preparado para ela. Em suma, a lei, em vez de reflectir, contrariava o sentir da sociedade. Daí, os atropelos ao seu cumprimento. E a luta continuou já sem o carisma de Luther King, e o seu sonho foi fazendo caminho – um longo e atribulado caminho. A eleição de um negro para Presidente dos Estados Unidos provou que o sonho se realizara na sua plenitude.

Não foi o primeiro. Quem ler a História com um mínimo de sentido profético encontrará exemplos vários de ideais impossíveis que, uma vez sonhados, fizeram o seu caminho, impulsionados pelo esforço dos homens. Pensemos na abolição da escravatura ou na queda do regime feudal; pensemos na abolição da tortura ou na queda dos regimes comunistas. Tudo coisas aparentemente impossíveis, mas perante cujo as quais ganha razão a frase absurda de Cristo reportada pelo evangelho de S. Mateus: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte ‘muda-te daqui para acolá’ e ele há-de mudar-se”. (Mt., 17, 20)
No processo de evolução do Mundo encontra-se, plantado por Deus, o gene da justiça. Mas foi ao esforço do homem que Deus confiou a construção do Mundo. Como diz o Salmista: “O Céu é do Senhor; a Terra entregou-a aos homens” (Ps. 113, 16). Olhando o mundo em que vivemos, não será difícil identificar estruturas de injustiça, algumas de magnitude tal que nos parecerão montanhas impossíveis de remover. Cruzar os braços? Não. O mesmo Cristo nos ensinou que “tudo é possível a quem tem fé” (Mc., 9, 22). O nosso dever é trabalhar empenhadamente para que a justiça triunfe. Não está dito que nos seja dado ver o fruto do nosso esforço: Luther King não viu. Eventualmente acumularemos fracasso sobre fracasso. Mas que nunca nos deixemos vencer pelo desânimo.
O P. Teilhard de Chardin preconizava como atitude a assumir a “indiferença apaixonada”. Trabalhar apaixonadamente como se tudo dependesse de nós; conservar-nos indiferentes quanto ao resultado, como se tudo dependesse de Deus.



©J. Tomaz Ferreira