sábado, 31 de janeiro de 2009

A TODOS VÓS...

Todos vós, os que fostes ridicularizados porque gritastes que o ser humano
valia mais que as flutuações da bolsa e as economias de rendimento;

Vós, os que fostes cobertos com o manto vermelho do escárnio
porque vendestes tudo o que possuíeis para o distribuir pelos pobres;

Vós, todos os que nos precedestes no caminho da fraternidade;

Vós, todos os que fostes perseguidos porque repetistes que a igualdade
era o primeiro direito para qualquer ser humano de qualquer país e de qualquer povo
e que o primeiro dever de todo o Poder e de todo o Estado e de toda a Religião
era zelar com fervorosa integridade a fim de que cada um tivesse acesso
aos mesmos privilégios da existência;

Vós, todos os que nos precedestes no caminho da Justiça;

Vós, todos os que fostes crucificados porque acreditastes no único poder do amor,
vós todos os que fostes assassinados porque pretendestes
que a teoria das raças era uma invenção
destinada a consolidar o poder de uma casta de senhores,
vós, todos os que cantastes o Deus único
juntando à volta d’Ele todos os seus múltiplos filhos diferentes,
vós todos os que fostes atormentados porque ousastes opor o diálogo aos fuzis;

Vós todos os que nos precedestes no caminho da paz;

Vós todos, explorados sufocados por terdes alertado tanto, amado e falado,
vós todos os que caístes em tantos combates de solidariedade;

Vós sois luz sobre o caminho da Humanidade
e na nossa memória viveis para a eternidade.
Bíblia 2000, vol. 4. pag. 90.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Sinais do tempo

«Provavelmente, Deus não existe». Este é o slogan que circulou (circula?) nos autocarros de Londres pago por uma organização militantemente ateísta. Há alguns dias esta campanha começou a circular pelas ruas de Madrid.
«Deus existe» é a resposta evangélia de uma Igreja madrilena à questão levantada pela associação ateísta.
Deus anda pelas ruas da Europa laica. Pelo menos isto, uma e outra organização conseguiram fazer. O que de facto não é uma questão de menor importância. Há muito que deixámos de regular a nossa existência pela Liturgia das Horas, esse compendêndio inefável de Esperança. Por isso, pôr Deus a todas as horas por entre o nosso olhar é uma gloriosa manifestação de inteligência, que por ser europeia, neste tempo, confesso, muito me surpreendeu.
Quando tenho dúvidas sobre a existência de Deus, ou essas dúvidas persistem no tempo, mais do eu mesma permito ao tempo, porque, como sabem, há dúvidas que valem a pena que perdurem, releio S. João da Cruz e o seu maravilhoso poema, Noite Escura.
E aí, no meio da dúvida, calma e serenamente começa a nascer a palavra mágica: provavelmente, provavelmente Deus existe, depois, o provavelmente, torna-se dia a dia mais seguro e de repente, a palavra provavelmente transforma-se em certamente, é então que o certamente Deus existe triunfa, uma vez mais, no coração e na mente de uma «pobre» mulher. Até quando?
Agrada-me ver algumas cidades europeias infestadas pela dúvida. Ao menos a dúvida. A dúvida é sempre um bom passo para a inteligência transformar-se em sapiencia. Não é este o trajecto do pensamento alicerçado na razão?
O grupo dos ateus militantes da nossa esquerda não querem importar a ideia do «provavelmente Deus não existe» ou acham que a questão está mal posta?

A INDIFERENÇA APAIXONADA

Da obra ousada a minha parte é feita;
O por fazer é só com Deus.
F. Pessoa

Ao presenciar a investidura de Barack Obama como Presidente dos Estados Unidos, veio-me de imediato à memória o nome de Martin Luther King. Naquela praça, há menos de cinquenta anos, pronunciou ele um discurso histórico em que expressava o seu sonho: I have a dream. E o que sonhava Luther King? Que os homens naquele país deixassem de ser julgados pela cor da pele, para passarem a sê-lo pelos seus méritos ou deméritos.
Estava-se na América dos anos sessenta onde o esclavagismo (abolido por Abraão Lincoln) deixara atrás de si uma sociedade ferozmente segregacionista em que floresciam organizações racistas como o Ku Klux Klan que semeava terror e morte. A prisão duma costureira negra pelo “crime” de se ter recusado a ceder num autocarro o seu lugar a um “senhor” branco foi o detonador para a campanha pela igualdade de direitos que de imediato lançou e em que se empenhou um jovem pastor evangélico, de seu nome... Martin Luther King.A campanha varreu a América no meio de vicissitudes várias. Conhece-se o trágico desfecho: Luther King foi assassinado, e não há dúvidas quanto às determinantes do crime.
Parecia que o sonho de Luther King não passara disso mesmo: um sonho. É verdade que consagrou em lei a igualdade de direitos, acabando, no plano jurídico, com a discriminação racial. Mas o ambiente social continuou francamente hostil. Muitos houve que apontaram à lei o defeito de ser prematura: sociologicamente o país não estava preparado para ela. Em suma, a lei, em vez de reflectir, contrariava o sentir da sociedade. Daí, os atropelos ao seu cumprimento. E a luta continuou já sem o carisma de Luther King, e o seu sonho foi fazendo caminho – um longo e atribulado caminho. A eleição de um negro para Presidente dos Estados Unidos provou que o sonho se realizara na sua plenitude.

Não foi o primeiro. Quem ler a História com um mínimo de sentido profético encontrará exemplos vários de ideais impossíveis que, uma vez sonhados, fizeram o seu caminho, impulsionados pelo esforço dos homens. Pensemos na abolição da escravatura ou na queda do regime feudal; pensemos na abolição da tortura ou na queda dos regimes comunistas. Tudo coisas aparentemente impossíveis, mas perante cujo as quais ganha razão a frase absurda de Cristo reportada pelo evangelho de S. Mateus: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte ‘muda-te daqui para acolá’ e ele há-de mudar-se”. (Mt., 17, 20)
No processo de evolução do Mundo encontra-se, plantado por Deus, o gene da justiça. Mas foi ao esforço do homem que Deus confiou a construção do Mundo. Como diz o Salmista: “O Céu é do Senhor; a Terra entregou-a aos homens” (Ps. 113, 16). Olhando o mundo em que vivemos, não será difícil identificar estruturas de injustiça, algumas de magnitude tal que nos parecerão montanhas impossíveis de remover. Cruzar os braços? Não. O mesmo Cristo nos ensinou que “tudo é possível a quem tem fé” (Mc., 9, 22). O nosso dever é trabalhar empenhadamente para que a justiça triunfe. Não está dito que nos seja dado ver o fruto do nosso esforço: Luther King não viu. Eventualmente acumularemos fracasso sobre fracasso. Mas que nunca nos deixemos vencer pelo desânimo.
O P. Teilhard de Chardin preconizava como atitude a assumir a “indiferença apaixonada”. Trabalhar apaixonadamente como se tudo dependesse de nós; conservar-nos indiferentes quanto ao resultado, como se tudo dependesse de Deus.



©J. Tomaz Ferreira


quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

EU SEI


Sei
Que, se os homens morrem de fome, aos milhares, enquanto outros morrem de indigestão, é porque não soubemos partilhar o trigo e amassar o pão para os nossos irmãos.
Sei
Que, se tantos e tantos jovens explodem na violência, querendo tomar à força aquilo de que estão privados, é porque nasceram por engano, do acaso de um abraço, ou então são amados como bonecas por pais imaturos, que colocam à sua frente o automóvel e o cachorro.

Sei
Que, se há homens que nada vêem nas páginas dos livros para além de sinais negros e mudos, é porque alguns guardam a sabedoria para eles, como um dom pessoal, exclusivo.

Sei
Que, se a Terra é propriedade e proveito para alguns, ainda que não seja senão campo de trabalho e de sofrimento para a maior parte, é porque os homens se esqueceram de que a Terra é para todos, e não apenas para os mais fortes.

Sei
Que, se alguns homens, é verdade, são mais ricos de inteligência, de saúde, de coragem, do que os outros, as suas riquezas são uma dívida para com os desprovidos, mas sei também que, demasiadas vezes, esta dívida aumenta, em vez de diminuir.

Sei
Que, se milhões de homens vivem sem poderem, livres e responsáveis, tomar o seu lugar na construção do Mundo, é porque alguns se julgam nascidos para senhores a quem fazem falta escravos, para poderem continuar a viver.

Sei
Que, se milhares de prisioneiros agonizam em campos de concentração, ou gritam, submetidos à tortura, é porque alguns homens se julgam senhores absolutos da verdade, e matam, lentamente, os corpos, para que morra o pensamento.

Mas sei também e admiro
Que alguns homens, por toda a parte, se levantam corajosos e, de pé, se lançam, seu corpo sangrando, nas lutas pela justiça e pela paz; mas também sei que, de um corpo que combate sem um coração que palpite, não pode nascer uma vitória, porque as lutas sem amor são lutas vãs: o sangue que elas fazem correr clama por outro sangue.
Michel Quoist, Falai-me de Amor, ed. Paulistas.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

PROGRAMA PARA HOJE

Mão amiga fez-me chegar pelo Natal um simpático e-mail de Boas-Festas com fotografias belíssimas e citações várias. Entre elas, uma frase de Buda que rezava assim: “Programa para hoje: expirar, inspirar, expirar”. Pareceu-me (passe a presunção) que o autor (Buda, no caso) fora um tanto perdulário nas palavras do programa, já que teria dito o mesmo se tivesse dito apenas: “respirar”.
Sem quebra do respeito que me merecem todas as religiões, dei comigo a pensar no que teria sido feito do mundo se os homens todos, levando à letra o programa, o tivessem escrupulosamente cumprido, não apenas “hoje” mas todos os dias da sua vida...
Não é minha intenção, ao escrever estas linhas, menosprezar os valores que o Budismo e de uma maneira geral as correntes de espiritualidade orientais trouxeram à humanidade, e que, por temperarem o frenesim de acção que marca a mentalidade ocidental, encontram hoje entre nós tão entusiástico acolhimento. Pretendo apenas contrapor-lhes o que penso ser a visão cristã da actividade humana e o programa de vida dela decorrente.
O Patriarca dos monges do Ocidente, S. Bento, estabeleceu para os seus seguidores, como caminho para alcançar a perfeição cristã, a sucinta máxima que se reduz a duas palavras: ora et labora – reza e trabalha. E não será demais acentuar que, nas ordens religiosas, o trabalho andou sempre de par com a oração. Pensemos nos cistercienses de Alcobaça a quem se ficou a dever, nos primórdios da portugalidade, o arroteamento das ásperas terras circundantes do mosteiro, por eles transformadas em vergéis de muitas e boas culturas. Ainda hoje as ordens contemplativas, como a dos Cartuxos, incluem na sua rotina o trabalho manual, nomeadamente na agricultura. E se as necessidades do apostolado desviaram muitos para a pregação e a cura de almas, não podemos esquecer que, desde sempre, e mesmo nos nossos dias, o trabalho intelectual tem sido apanágio das Ordens Religiosas. Foi no seu seio que se construíram alguns dos mais imponentes monumentos de saber que honram a humanidade: penso, por exemplo, em S. Tomás de Aquino e na sua Suma Teológica.
O cristianismo sempre honrou o trabalho e nunca menosprezou as realidades terrestres. S. Paulo confessa com mal disfarçado orgulho que “trabalhava com as suas próprias mãos” (Cf. 1Cor., 4, 12), e taxativamente diz que quem não trabalha não tem direito a comer (Cf. 2Tess., 3, 10).
O valor do trabalho não radica apenas no facto de ele ser factor imprescindível para responder às necessidades de sustento do homem. Vem de mais longe e de mais fundo. Segundo o Génesis, logo após tê-lo criado, Deus impôs ao homem a obrigação de perpetuar a espécie e de dominar a Terra: “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra” (Gen., 1, 28). É para este domínio da Terra que eminentemente se orienta o trabalho do homem. Porque Deus não quis ser o único artífice da criação. Reservado a Si estava o impulso inicial de fazer do nada emergir o ser. Os desenvolvimentos posteriores entregou-os às causas segundas, entre as quais o homem. Não é doutrina minha: foi S. Tomás de Aquino que o escreveu – Deus age através das causas segundas.
O mundo que vemos é um mundo inacabado. Em construção encontra-se a nova Terra de que falam S. Pedro e o Apocalipse. E a nova Terra será obra de Deus realizada através da acção do homem. É este o grande valor do trabalho humano, é isto que faz a sua grandeza.
J. Tomaz Ferreira

EVANGELHO E VIDA

DOS JORNAIS

Empresas do PSI-20 pagaram 31 vezes mais aos executivos do que aos seus trabalhadores. (...) Temos um caso em que a empresa pagou 58 vezes mais, e outro 124 vezes mais.

DO EVANGELHO

“Mas ai de vós os ricos,
porque recebestes a vossa consolação.” (Lc.,6, 24).

UMA PERGUNTA

Os pedidos de contenção salarial que regularmente são feitos pelo Governador do Banco de Portugal também se aplicam aos executivos?

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

JESUS MENINO

Os grandes olhos fechados sob o arco das pálpebras
Já deixavam de ver o seu imenso reino
Ao passo que os pastores chegados das veredas
O viam a dormir sobre a palha e no colmo.

Por uma trança imensa tombavam os cabelos
E faziam na nuca a sombra cava e loira.
Os reis do Oriente chegados de embaixada
Olhavam-no a dormir como ao senhor do mundo...

Só a curva do braço detinha a testa loira.
Os membros distendidos alinhavam-se puros.
Tudo então era novo; o salvador do mundo
Era ainda a criança a brincar na soleira.

E na curva do braço rodava a loira testa,
Que depois repousou num pobre túmulo.
Tudo pesava nessa noite profunda
A mesma que caiu sobre um supremo luto.

Tudo nele repousava enquanto os doces lábios
Se riam e abriam como flores abertas.
O sangue nado-novo desses lábios rosados
Corria no canal das novíssimas veias.

E o sangue que mais tarde no Calvário
Havia de cair como um ardente e trágico orvalho
Não era nesta hora de tranquila miséria
Mai do que um fio sob os lábios vermelhos.

Ch. Péguy

domingo, 4 de janeiro de 2009

CREIO EM UM SÓ DEUS

Há pouco mais de um ano (se a memória me não falha) o Patriarca de Lisboa identificava o ateísmo como o mal maior da nossas sociedades.
Que o ateísmo existe, é um facto evidente, embora muitas vezes se confunda ateísmo com agnosticismo. Mas são diferentes: o ateu sabe que Deus não existe; o agnóstico não sabe se Deus existe.
É uma distinção que tem pouca relevância prática, pois, ao nível dos comportamentos, na lógica das suas convicções, agnóstico e ateu agem como se Deus não existisse.
Pensando bem, ao nível da orientação de vida, não existem ateus nem agnósticos. Com efeito, a vida de cada um processa-se na lógica daquilo que cada um erigiu em absoluto para si. O absoluto de cada um é o seu deus. Paradoxalmente, diria que ninguém pode viver sem um Deus para que se oriente, sem algo que seja a referência do seu agir. E quando nega ou recusa reconhecer o verdadeiro Deus, constrói ele próprio o deus ou os deuses que orientam a sua vida.
Isto encontra-se claramente no mito bíblico da queda primitiva. Simbolicamente, a desobediência consumou-se na transgressão do preceito divino que proibia comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal – cuja contrapartida seria, nas palavras da serpente o “sereis como deuses” (Gen., 3, 5). Na queda original há uma primeira negação de Deus (o verdadeiro) e a construção de um ídolo, o novo deus – o próprio indivíduo – que se arroga o poder de definir o que é bem e o que é mal.
Esta usurpação do absoluto pelo indivíduo é a forma de ateísmo mais comum nos nossos dias, como o tem sido ao longo dos séculos. Atinge não apenas os que se dizem agnósticos ou ateus, mas também muitos daqueles que regularmente afirmam, mentindo, “creio em um só Deus”. Porque todo o pecado redunda em idolatria e a vida em pecado consiste em ter como orientação fundamental do agir o próprio eu.
Na crise que estamos a viver, muitos identificaram já como causa a ganância de gestores e administrações que no engodo do lucro fácil e pingue, arrastaram o sistema financeiro mundial para o buraco em que se encontra, cujas dimensões ainda se não conhecem e cujas consequências se adivinham catastróficas. Deles se poderia dizer, em tradução brutal, o que disse S. Paulo: “Têm como deus a própria barriga” (Filip., 3, 19). À força de pensarem no enriquecimento próprio, lançaram o mundo no sarilho que se sabe.
Eram ateus? De doutrina, não sei. Na prática agiram como tal. E agir contra Deus é agir contra a natureza das coisas. E a natureza não perdoa nunca. A curto, médio ou longo prazo, a sua vingança aparece. Pena é que, no caso vertente, para além dos culpados, atinja também tantos inocentes.

J. Tomaz Ferreira