terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O Grande Natal

Os judeus gloriavam-se da proximidade de Deus ao Seu povo. Elucidativas as palavras do Deuteronómio: “Que grande nação haverá que tenha um deus tão próximo de si como está próximo de nós o Senhor nosso Deus?” (Deut., 4, 7)
Ocorrem-me estas palavras em tempo de Natal, quando celebramos o mistério maior da nossa fé cristã, que é o mistério da Incarnação, e penso quanto as nossas celebrações natalícias andam em geral arredadas e muito do essencial do mistério que se comemora.
E não. Não vou bater no Natal consumista dos presentes que se trocam e em que parece esgotar-se a amizade entre pessoas. Nem no Pai Natal que vem da Lapónia num carro puxado a renas distribuir brinquedos aos meninos: os anglo-saxónicos ainda lhe põem uma pitada de religioso identificando-o com S. Nicolau – nós nem isso. Falo atrevidamente do Natal com Menino Jesus – exaltação da infância e chamamento à ternura e à solidariedade, e não renego a poesia do presépio com o menino aquecido pelo bafo quente dos animais, a vaca e o burrinho que a tradição fixou.
Mas o essencial do Natal não está aí. O essencial do Natal é o mistério de um Deus que se faz homem. Não um deus que toma a aparência de homem para assim comunicar com os outros homens. O Cristo, deus com aparência de homem, foi o erro dos docetas que a Igreja condenou. O Deus do Natal é o Deus que assumiu a natureza humana real, que, sem deixar de ser Deus, se torna homem verdadeiro – Deus verdadeiro e homem verdadeiro – para comungar da existência humana, das suas limitações e da sua grandeza, do seu pensamento e das suas emoções; tão homem como qualquer homem, e que não é já apenas “Deus connosco”, mas passa a ser “Deus um de nós”. Com verdade a espécie humana pode dizer que houve, num tempo bem determinado da história, um dos seus, um indivíduo dessa espécie que era realmente Deus. Esta é a verdadeira dimensão do Natal: a união da divindade à natureza humana, a assunção irreversível, pelo Deus eterno e infinito, da criatura temporal e limitada.
No mistério do presépio, Deus não está apenas connosco: Deus é um de nós. E ao fazer-se um de nós, o Eterno fez-se tempo, entrou na História, comprometeu-se com ela. A partir daí, a história do homem não pode fazer-se sem mencionar Deus, porque a história dos homens é também a história de Deus. Esta a singularidade da religião cristã, quase blasfema, que proclama a comunhão do absoluto com o contingente: contingente enquanto homem, absoluto enquanto Deus. E a apontar, pela própria lógica das coisas, para a improvável absolutização do contingente, se não se quer o absurdo de ser este a absorver o absoluto. Como toscamente dizia o nosso épico: “Do Céu à Terra enfim desceu / para subir os mortais da Terra ao Céu”. Porque, no menino do presépio, naquela natureza humana assumida por Deus, é de certo modo toda a humanidade que é assumida, numa aliança indestrutível e eterna.
J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Único Sabor

Sabor, sabor oculto,
submerso,
sabor adormecido, ó rosas, ó antes, primaveras,
sabor só abruptamente surto na queda do sono, no fulgor de um relâmpago,
surto, submerso.
Ó sabor antes da consciência, antes de tudo,
ó sabor só nascido sobre a paz última de tudo para além de tudo,
sabor da terra ainda antes dos olhos,
sabor a nascer, sabor-desejo, antes do beijo, sabor de beijo,
sabor mais lento, mais fundo, mais de dentro,
sabor a marulhar, cálido, denso, como a cor,
sabor de estar, sabor de ser,
ó tranquila degustação sem mandíbulas,
sabor de dentro como de um cheiro imemorial presente,
ó colinas esparsas, ó veios de águas sussurrantes,
somente ouvidos, nem sequer ouvidos, mas presentes, esparsos,
ó presença da terra nas pálpebras, num sabor acre da garganta,
ó estrelas, ó verdadeiras estrelas da infância,
ó sabor do escuro, do ventre, da espessura da noite,
ó profundo sono de raízes,
ó água bebida ao rés da terra, ó sono da vida,
ó som de bichos, de tudo e nada, num só obscuro silêncio,
ó terra junto a mim, ó grande e estranha terra,
ó perdida proximidade, ó perdida longinquidade,
ó enorme som de búzio do mar, ó tranquilos jardins, ó sabor de cansaço,
ó sabor antes de mim,
ó quando eu não sabia e tudo em mim sabia,
ó noite, ó espessura, ó outra vez a noite,
outra vez esse sabor submerso, esse sabor do fundo,
esse sabor bem longe, esse sabor total,
esse sabor onde eu sinto a terra num só gosto,
esse sabor original, fonte de todo o sabor,
surto submerso,
ó único sabor.

António Ramos Rosa

domingo, 13 de dezembro de 2009

M A G N I F I C A T

S. Lucas guardou no seu Evangelho o cântico que Maria terá entoado quando, após a anunciação do Anjo de que iria ser a mãe do Salvador, se encontrou com sua prima Santa Isabel, tocada também ela pela graça do Céu para ser a mãe de João Baptista. Falamos do Magnificat, tal como nos aparece em Lucas, cap. I, vv. 46-55.
É um hino muito belo de louvor a Deus, de agradecimento pelas maravilhas que operou, mas também de revelação dos desígnios de Deus acerca dos homens:
Manifestou a força do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
e aos ricos despediu-os de mãos vazias.(vv. 51-53)

Maurras, fundador da Action Française, que de todo não se revia em semelhante concepção do mundo, viu bem a força subversiva destas ideias e agradeceu à Igreja por ter embrulhado conceitos tão agrestes e perigosos em música suave que lhes retirava a força agressiva que realmente continham. Já o agnóstico Paul Claudel encontrou a Fé ao ouvi-las cantar na catedral de Notre Dame. De facto, este elogio da humildade e da pobreza é bem a antecipação abreviada do programa de vida proposto por Jesus nas Bem-aventuranças.
Eu sei que casa mal com a cultura dominante, obcecada pela ganância, ávida de poder e de notoriedade, esta exaltação do despojamento e da humildade. Mas, se olharmos para os males que se abateram sobre o mundo, nomeadamente os mais recentes, não é difícil concluir que a crise que vivemos é realmente fruto da ganância de muitos que, do alto da sua soberba, não tiveram a humildade de reconhecer a realidade das coisas e julgaram poder afeiçoá-las à sua vontade.
Apetece-me citar Santa Teresa de Ávila quando escreve que “a humildade é a verdade”. A que acrescentareis a aguda observação que Baruc Espinoza nos deixou na sua Ética: “Se supusermos um homem que tem consciência da sua fraqueza, porque conhece algo de mais poderoso do que ele próprio, e através desse conhecimento delimita o seu próprio poder de acção, não conhecemos nada mais do que um homem que se conhece perfeitamente a si próprio, isto é, que tem consciência de que o seu poder de acção é secundado”.
Não haverá cristão que não subscreva estas observações.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

DEUS DE ALEGRIA


Que viestes vós ver aqui?
Um Deus estabelecido
Numa adorável solidão,
Guardando um eterno silêncio
A fim de se ocupar apenas
Da Sua glória?

Um Deus instalado
Num eterno repouso
Onde contempla o seu próprio poder
A fim de se saciar com ele?

Um Deus que lançou
O universo na sua trajectória
E depois deixa-o derivar
Antes de ele próprio se retirar
Para o seu eterno infinito?

Aquele que viestes contemplar
É um Deus de dança
Que arrasta os vivos com a sua música
No seu eterno movimento de alegria!

É um Deus de Palavra
Porque não quer existir
Senão para um eterno face a face
De partilha e de amor
Com os vivos!

É um Deus de beleza!
Para felicidade dos vivos
Ele pinta muitos arco-íris
Como brilhantes frescos
Sobre a imensa tela do universo!

É um Deus de abundância
Que multiplica para nós as dádivas
E que nos torna seus aprendizes
A fim de que nos tornemos, com Ele,
Seres vivos dançantes, de palavra e beleza,
Que trabalhem com Ele para sempre!

É um Deus que faz novo o universo
Sem lágrimas e sem luto!
É um Deus que faz brotar a vida!

Bíblia 2000. vol. 18, pag. 186

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O M E U A D V E N T O

Estamos no tempo do Advento, aquele tempo em que a Igreja convida os seus filhos a prepararem-se para celebrar o mistério maior da nossa Fé: a Incarnação do Verbo, a assunção por Deus da natureza humana para se fazer um de nós, igual em tudo aos outros homens, excepto no pecado – como judiciosamente observa S. Paulo.
E aos nossos ouvidos a liturgia faz ecoar as palavras dos Profetas, interpretes da expectativa ansiosa com que o Povo de Deus, com que (porque não dizê-lo?) toda a humanidade aguardava aquele momento culminante da História em que, assumindo o risco do compromisso com a mesma História, Deus se fazia seu agente directo, não já apenas através das causas segundas, mas em pessoa. “Mandai, ó céus, lá do alto o vosso orvalho; que as nuvens façam chover o Justo; abra-se a terra e germine o Salvador”. (Is., 45, 8). E a expectativa comemorada culmina na comemorada celebração do nascimento de Jesus – de qualquer modo um acontecimento passado que, passível embora de ser repristinado por cada um à sua maneira, não deixa de ser passado, por força mesmo do compromisso com a História de que falámos.

Mas há um Advento que se pode celebrar não como memória de um tempo passado, mas como vivência de um tempo presente. Lembro-me, aliás, de que, antes da reforma litúrgica em vigor, se lia em dois domingos seguidos o evangelho do fim do mundo: era no último domingo depois do Pentecostes e no primeiro domingo do Advento. Justamente. A Mãe Igreja fazia questão, no início da caminhada para o Natal, de lembrar ao Povo de Deus que o seu tempo presente é um tempo de espera e de expectativa, não apenas em sentido comemorativo, mas no sentido real do presente que se vive. Porque o grande sentido da caminhada do Povo de Deus ao longo dos séculos é esta atitude de espera e de esperança no Senhor que vem
E o Senhor virá quando a grande obra da Redenção, que Ele realizou morrendo na cruz, se encontrar consumada também na sua dimensão cósmica.
Há um texto precioso (infelizmente muito esquecido) de S. Paulo no capítulo VIII da Epístola aos Romanos, em que o Apóstolo é muito claro e impressivo quanto a esta dimensão cósmica da Redenção: a criação inteira vive uma expectativa ansiosa aguardando a revelação dos filhos de Deus (v. 19), quando ela própria será libertada da escravidão da corrupção para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus (v. 21); e a criação vive essa expectativa em sofrimento, pois “geme e sofre as dores do parto” (v. 22) até que chegue o momento em que a Redenção de Cristo se encontre consumada – e então o Senhor virá em glória.
É este o Advento real e não apenas simbólico que se encontra em curso e que somos convidados a viver activamente todos os dias. Porque este trabalho é obra de Deus (“o meu Pai continua a operar e eu também”, disse Jesus – Jo., 5, 17) mas é também obra dos homens que vivem no mundo e operam no mundo o trabalho de Deus.
E o mundo, a criação fará o seu caminho até à Parusia – a revelação do Cristo glorioso que então e só então poderá entregar ao Pai todas as criaturas que o próprio Pai submeteu ao seu domínio, e DEUS SERÁ TUDO EM TODAS AS COISAS (Cf. 1Cor., 15, 28).
É este o grande Advento que me seduz. É ele que dá sentido a quanto fazemos os que acreditamos que, para glória de Deus Pai, Jesus Cristo é o Senhor. Ámen. Vem, Senhor Jesus.
J. Tomaz Ferreira