terça-feira, 24 de março de 2009

M I N U D Ê N C I A S

Há na vida da Igreja pequenas normas, pequenos procedimentos, certas maneiras de fazer que na maior parte dos casos nos passam despercebidos, a que não atribuímos importância, e que, no entanto, se revelam muitas vezes fundamentais para a inteligência da Fé que se exige num cristianismo adulto.
No Código do Direito Canónico, fui descobrir, por entre aquela floresta de normas que regulam a vida da Igreja, uma que eu conhecia, é certo, como praxe, mas que não pensava ter sido vertida em Cânon com direito a figurar no Corpus das leis da Igreja.
Trata-se do Cn. 906, que reza assim: Sem causa justa e razoável, não celebre o sacerdote o sacrifício eucarístico sem a participação de pelo menos um fiel.
Por mim, vejo, nesta prescrição de “ao menos um fiel presente”, a prova provada de que a Eucaristia não é nunca obra de um homem só, ainda que dotado da unção que lhe confere o sacerdócio ministerial. A Missa é por definição (e sempre foi) obra do Povo de Deus, no exercício mais alto e sublime do seu sacerdócio régio que lhe foi conferido com a unção baptismal.
Uma apreciação superficial do rito da Missa (não esqueçamos que lex orandi, lex credendi - ou seja que assim se reza como se crê, a oração é um reflexo da fé) aponta indiscutivelmente para uma acção comunitária que só tem sentido quando celebrada no contexto duma comunidade. Desde logo porque a Eucaristia é uma refeição, e é sabido que, no nosso contexto civilizacional, a refeição é por excelência um momento de convívio e de partilha. Por isso à Eucaristia se chamava, no princípio, a partilha do pão e do vinho. Há depois, no rito ou ritos em que se fixou a celebração eucarística, uma estrutura de diálogo que não tem sentido algum se debitada a solo. Já não falo da celebração da Palavra de Deus que antecede sempre a celebração eucarística propriamente dita, e onde a Palavra de Deus é proclamada. Como é evidente, não faz sentido que alguém proclame para si próprio o que quer que seja...
Depois, quando se entra na celebração eucarística propriamente dita, a estrutura de diálogo acentua-se. Note-se que o celebrante “não se atreve” a iniciar o rito eucarístico propriamente dito sem pedir a anuência da comunidade, que explicitamente convida para a celebração, quando diz “Demos graças ao Senhor Nosso Deus” (de notar que Eucaristia significa exactamente acção de graças). Só depois de a assembleia (a Igreja) exprimir a sua anuência – “é nosso dever, é nossa salvação” – o celebrante inicia a grande oração eucarística.
Portanto, é redutor dizer que a Missa é celebrada pelo padre, e completamente errado dizer que os fiéis assistem à Missa. Não assistem: participam. Ou melhor: é toda a comunidade, presidida por um ministro sagrado, que oferece ao Senhor o sacrifício da nossa Redenção. Diz-se que o celebrante age como representante de Cristo: e é verdade,
se pensarmos que o Cristo que ele representa não é tanto o homem Jesus limitado na sua humanidade histórica, mas o Cristo místico, que fez da Igreja, comunidade dos crentes, a sua humanidade de acréscimo, o seu Corpo místico que prolonga na história o mistério da Incarnação.
É o que se me impõe como evidente na exigência de representação da comunidade aquando da celebração da Eucaristia. De modo que se não pode haver Eucaristia sem ministro sagrado que a presida, também a não pode haver sem comunidade que por ele seja presidida.
J. Tomaz Ferreira

quinta-feira, 19 de março de 2009

DA NOSSA INCULTURA

Nos últimos tempos, tem sido frequente assistirmos ao espectáculo (sempre edificante, diga-se de passagem) da Igreja Católica a pedir desculpa por erros e dislates do passado. Abstenho-me de emitir opinião sobre alguns, pois neles mais se me figura não uma real necessidade de penitência que se exprime, mas uma perversa vontade, de auto-flagelação. Mas isso são contas de outro rosário que não vale a pena desfiar agora, que a nossa intenção se orienta noutro sentido.
A sociedade actual, a mentalidade actual é ágil a apontar à Igreja defeitos do passado e culpas no presente, e a pedir-lhe contas pelo mal que fez e pelo bem que deixou de fazer. E é bem que a Igreja se sinta escrutinada também pelos homens, para que mais fielmente possa servir ao seu senhor e último escrutinador que é Deus por tudo quanto fez ou deixou de fazer. Mas para a justiça ser completa, também se-lhe deveriam assacar méritos que teve, e, vamos lá, reparar injustiças de que foi vítima.
Vem isto a despropósito dum problema muito actual do país que, parece, tem repercussões na economia: o problema da educação. Somos um país atrasado porque em matéria de educação não fomos capazes de acompanhar os outros.... Inquestionável na sua factualidade, o caso mereceria que se lhe descobrissem as causas. Só que, desnudá-las, não será exercício agradável para muitos no poder.
Para perceber a nossa incultura e atraso, há que remontar aos tempos gloriosos do Marquês de Pombal e à sua histórica decisão de banir dos reinos de Portugal a Companhia de Jesus – sem se aperceber (ou apercebendo-se : afinal, como grande estadista que era suposto ser, teria de sopesar as consequências de qualquer mínimo gesto de governação, pois governar é acima de tudo prever) que do mesmo passo bania do país o exercício de ensinar, e consequentemente a educação no sentido que hoje lhe atribuímos.
Entre as muitas “malfeitorias” que se podiam atribuir aos jesuítas, estava o terem criado uma rede de ensino verdadeiramente notável para a época e que tinha a grande vantagem de não custar ao erário público um único ceitil.. Contava essa rede com nada menos que “26 colégios gratuitos, uma Universidade (Évora) e 2 escolas. Vários desses colégios tinham numerosos alunos: S. Paulo /(Braga) 2.000, S. Antão-o-Novo (Lisboa) 1800, Colégio das Artes (Coimbra) 2.000. A Universidade de Évora era frequentada por 1.600 alunos”. (Cf. Brotéria, vol. 168 – 1, p. 53). Era muito para o Portugal de meados do século XVIII. Destruir tudo aquilo equivaleria pouco mais ou menos a deitar a baixo quase a cem por cento a rede de ensino nacional. E não havia possibilidades de repor – por falta de mão de obra.
Aliás, um século depois, o Mata Frades, ao expulsar do País todas as Ordens Religiosas veio ainda agravar o problema – de que todos ainda nos queixamos.
Dizem e é verdade que o nosso subdesenvolvimento económico tem tudo a ver com a incultura grassante. É triste, mas não deixa de ser curioso, que na raiz deste mal cuja verdadeira dimensão só agora estamos a medir, esteja uma medida que em primeira mão se dirigia contra a Igreja.

J. Tomaz Ferreira

sexta-feira, 13 de março de 2009

NO PRINCÍPIO...

Consta que em certas escolas evangélicas dos Estados Unidos ainda hoje é proibido ensinar as teorias de Darwin sobre a evolução das espécies. Uma interpretação literal da narrativa bíblica das origens leva-os a perfilhar um criacionismo absoluto. Segundo eles, o mundo todo e tudo quanto nele existe foi feito por Deus directamente e do modo como o texto sagrado refere. Assim, a criação do mundo levou seis dias; Deus fez por si todas e cada uma das espécies vegetais e animais, e o homem foi plasmado por Deus a partir do pó da terra...
É evidente que uma tal leitura da Bíblia é desmentida não apenas pelas teorias de Darwin, mas por todos os dados adquiridos pela ciência no estudo do universo: os seis dias da Bíblia transformou-os a ciência em milhares de milhões de anos...
Que dizer então: é falso o que a Bíblia nos ensina? De modo nenhum. O que não podemos é pedir à Bíblia o que ela não é suposto fornecer. Em matéria de criação do mundo, a Bíblia ensina-nos o quê e não o como. Além do mais, a Bíblia não é um livro científico mas religioso onde se encontram as verdades que devem orientar o homem na sua caminhada terrena. De resto, se tivesse descrito a criação do mundo em termos científicos, não teria sido entendida por aqueles a quem imediatamente se destinava. Imaginemos que, em vez de dizer “no princípio criou Deus o céu e a terra”, o autor sagrado escrevia: “no princípio Deus produziu o big bang”: quem o teria entendido, se ainda hoje tantos há que do big bang nunca ouviram falar, e só uma ínfima minoria sabe em que realmente consistiu esse fenómeno primeiro?
Não. Se Cristo mandou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, também nós devemos atribuir à revelação divina o que a ela pertence, e ao engenho humano o que lhe cabe descobrir. A finalidade religiosa da Bíblia impunha que manifestasse ao homem as verdades fundamentais para orientar a sua conduta de vida e perceber a sua relação com Deus. Por isso mesmo, ensina que o mundo todo é fruto dum acto livre de Deus que do nada fez surgir o ser; que tudo quanto Deus fez é bom e que o mal existente no mundo não é obra de Deus – o pecado original (desobediência do homem a Deus) aparece no texto bíblico como elemento explicativo da inegável existência do mal; que, no conjunto da criação, o homem é um ser muito especial (a sua criação é precedida duma deliberação pensada – “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” –) e se em toda a criação é possível encontrar um reflexo de Deus, no homem está impressa a imagem desse mesmo Deus; por isso ele á constituído senhor da criação que deve dominar, porque foi para ele que Deus a empreendeu.
Será que o facto de não ter sido Deus a plasmar todas e cada uma das espécies as subtrai à acção criadora de Deus? O velho e esquecido e sensato S. Tomás de Aquino ensinou que no mundo Deus não age directamente mas através das “causas segundas”. O como do aparecimento da vida e das espécies na sua diversificação, Deus confiou-o às causas segundas. Chamem a estas causas os nomes que quiserem – acaso, grandes números, selecção natural. Pouco importa. Por elas, é sempre o mesmo Deus que continua a sua acção criadora. E é isto que a Bíblia nos ensina, centrada que está na Causa Primeira: o Deus que, no princípio, criou o céu e a terra.
J. Tomaz Ferreira

terça-feira, 10 de março de 2009

HORRIBILE DICTU

A excomunhão é a mais severa das penas eclesiásticas. O Direito Canónico reserva-a para os casos mais graves, normalmente em que há um atentado grave contra a própria comunidade. Como se sabe, o direito penal (e a Igreja tem um direito penal...) tem em vista a defesa da sociedade.
Não sendo o caso de enumerar aqui as acções para que a Igreja reserva a pena de excomunhão, podemos alinhar alguns exemplos: a apostasia, a heresia ou o cisma; a profanação da Eucaristia, a violência física contra o Papa, a consagração de um Bispo sem mandato do Papa... Está sujeito também à pena de excomunhão o aborto perpetrado... (Cf. Cn. 1398).
O efeito da excomunhão é a exclusão da Igreja: o excomungado deixa de ser reconhecido como membro da Igreja, e perde, consequentemente os direitos de que gozam os fiéis, nomeadamente, é excluído da celebração dos Sacramentos. Por exemplo, o excomungado não pode participar na celebração eucarística, e consequentemente não pode comungar, não conta com o consolo dos últimos sacramentos, nem pode ter funeral cristão.
Vem este intróito a propósito do que se passou recentemente no Brasil, onde o Bispo de Olinda e Recife decretou uma série de excomunhões. Foi a propósito de um caso sórdido duma criança de nove anos que, violada pelo padrasto, engravidou de gémeos. A família, de acordo com os médicos, que achavam que a gravidez punha em causa a vida da criança, optou pelo aborto. E foram todos excomungados – incluindo a criancinha violada, que, aliás, nem terá tido consciência do que lhe estavam a fazer: a família ter-lhe-á dito que precisava de fazer uma operação por causa duma doença que tinha na barriga.
No caso, tal como nos chegou, havia circunstâncias que, por exemplo em Portugal, fariam com que o aborto pudesse ser praticado legalmente, mesmo antes da actual lei que deixa o aborto ao total arbítrio da mulher, e contra a qual a Igreja ergueu veemente a sua voz : havia o risco de a gravidez por em risco a vida da mãe, por um lado, e havia, por outro, a circunstância de a mesma ter resultado de violação. É verdade que o Código de Direito Canónico não distingue. Mas também é verdade que em Portugal a lei foi aprovada sem que se ouvisse da parte da Igreja o mais pequeno protesto – o que configura pelo menos uma aprovação tácita.
Mas demos de barato tudo o resto, e fixemo-nos na menina. Tem nove anos. Sofre, por parte do padrasto, a infâmia duma violação. Castiga-a a natureza fazendo-a conceber numa idade em que era suposto ser impúbere. Como se tudo isso não bastasse, a Igreja, a Santa MÃE Igreja aplica-lhe a pena máxima! Que mãe é esta que assim trata os seus filhos? Onde fica, neste caso o mandamento maior, “amai-vos uns aos outros – nisto conhecerão que sois meus discípulos”?
Felizmente a teologia ensina (e não podia deixar de o fazer) que a Igreja tem duas faces que nem sempre coincidem: a jurídica e a mística. A primeira está nas mãos dos homens; da segunda só Deus é o Senhor. No caso vertente, pode um bispo desumano excluí-la da Igreja jurídica (o foro externo); mas certamente que no foro interno, aquela filha de Deus não foi expulsa da família pelo único que o poderia fazer: o próprio Deus.
Escrevo estas linhas estéreis para manifestar a minha solidariedade para com aquela inocente injustamente castigado; mas também para exprimir a minha tristeza por ver que na minha Igreja (que não renego) continua a haver pastores que se comportam como lobos,
J. Tomaz Ferreira

quinta-feira, 5 de março de 2009

CONSTRUTORES DO MUNDO


Tu podias, Senhor, ter-nos oferecido um mundo já perfeito,
Sem nada a procurar ou a encontrar,
Cidades perfeitas e pontes lançadas sobre rios “domesticados”,
Habitações construídas e estradas traçadas sobre montanhas perfuradas e aplanadas,
Grandes fábricas-paraíso, para trabalhadores satisfeitos,
Planos a aplicar, sem erros possíveis.
Mas nós somos homens, de pé, livres e construtores do Mundo

Ó Senhor, obrigado,

Porque Tu não quiseste fazer de nós executantes sem alma
De ordens vindas do Céu,
Mas responsáveis pelo Universo,
Orgulhosos criadores, sob o Teu olhar de Pai.


Michel QUOIST, Falai-me de Amor, ed.Paulistas, pag. 87.

segunda-feira, 2 de março de 2009

FALANDO AINDA DE DEUS

Num texto que ficou conhecido como MEMORIAL, descreve Pascal a experiência mística por que passou na noite de segunda-feira, dia 23 de Novembro do ano da graça de 1654, e em que acedeu à verdade que havia de nortear a sua vida até à morte ocorrida oito anos depois. É aí que proclama, logo ao entrar, as palavras decisivas do seu encontro com a Verdade: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não o Deus dos filósofos e dos sábios... o Deus de Jesus Cristo”.
É que filósofos e sábios podem concluir pela existência de Deus, podem encontrar-Lhe atributos como os da omnipotência, da omnisciência, da omnipresença. E pouco mais. S. Tomás de Aquino preconiza as três vias para o conhecimento de Deus: a da afirmação – atribuir a Deus tudo o que de bom se encontra nas criaturas; a da negação - afastar da ideia de Deus tudo o que de mau ou defeituoso se nos depara no mundo; a da eminência – elevar ao infinito o que de bom se atribui a Deus. É pouco. É pobre. No termo da reflexão dos filósofos encontra-se, quando muito, um Deus em si. Impossível lhes será determinar se e como é Deus para nós. E este é, como aliás já dissemos, o cerne do problema de Deus, quando pensado pelos homens.
Tinha, pois, razão o Apóstolo S. João quando escrevia: “A Deus nunca ninguém o viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer”. (Jo. 1, 18).
O ponto fulcral que na revelação de Deus em Jesus Cristo define a atitude de Deus face ao mundo e, nomeadamente, face ao homem, é o Amor. A filosofia chega ao Deus criador, e daí não passa a não ser em termos de pergunta sem resposta: porquê? Para quê? O que levou Deus a criar o mundo? E qual o objectivo da criação? Perante estas perguntas, a razão humana emudece, porque não consegue extrair do criado elementos que lhe permitam mais do que formular hipóteses, mais plausíveis umas do que outras, sem que nenhuma se imponha como indiscutível. De resto, no vasto mundo e no desenrolar da História abundam as ambiguidades que infirmam qualquer conclusão que quisesse aventar-se como decisiva.
É Cristo quem nos revela que é de amor a relação de Deus com o mundo, nomeadamente nas espantosas palavras que proferiu no seu diálogo com Nicodemos reportadas no Evangelho de S. João: “Deus amou de tal modo o mundo, que lhe entregou o Seu Filho Unigénito” (Jo., 3, 16). É pois à luz do amor que se deve entender toda a relação que Deus quer estabelecer com os homens. Um amor indescritível, inefável, como diria S. Agostinho. Para o traduzir em termos humanos, Cristo foi buscar a realidade que melhor traduz o amor gratuito e apresentou-nos Deus como Pai: “Um só é o vosso Pai que está nos céus, e todos vós sois irmãos” ( Mt., 23, 9). Pai é o nome por que Deus quer ser chamado pelos homens: “Quando rezardes, dizei assim: Pai nosso que estais no céu” (Mt., 6, 9).
Como estamos longe do Deus omnipotente dos filósofos cuja grandeza nos esmaga e a cujo convívio dificilmente podemos aspirar! O Deus de Jesus Cristo é um Deus presente, é um Emanuel: é um Deus connosco. Como já, com uma ponta de orgulho, escrevia o autor do Deuteronómio, referindo-se ao Povo de Israel: “Que nação haverá que tenha um Deus tão próximo de si, como está próximo de nós o nosso Deus?”(Deut., 4, 7).
Parafraseando as palavras de Pascal: Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob; não o Deus dos filósofos e dos sábios, fixado na solidão gelada da sua infinitude; mas o Deus de Jesus Cristo, que nos ama e acompanha, como um pai aos seus filhos.

J. Tomaz Ferreira