segunda-feira, 16 de novembro de 2009

ler a Bíblia

Muitos cristãos se queixam de que é difícil ler a Bíblia. De facto, assim é. A Bíblia é um livro muito especial. Antes de mais há que ter presente que a Bíblia não é um livra apenas, mas sim um conjunto de muitos livros. O nome no singular que nós usamos traduz o plural grego tá Biblía, que quer dizer “os livros”. Por outro lado, a colectânea de livros que constituem a Bíblia foram sendo escritos ao longo de muitos séculos e em línguas que nos são estranhas: o Velho Testamento em aramaico, e o Novo Testamento em grego.
Estas características inegáveis de pluralidade dos livros, dos tempos longínquos em que foram escritos, das línguas e, consequentemente, das culturas diversas em que foram vasados fazem com que, sendo objecto de Fé, a Bíblia seja antes de tudo objecto de estudo. Centenas de homens, sobretudo no último século e meio, dedicaram a sua vida ao estudo científico da Bíblia: judeus, católicos e protestantes fundaram e mantêm escolas onde os segredos do Livro têm vindo a ser desvendados, e contam-se por centenas de milhares as obras que resultaram desses estudos.
Não quer isto dizer que a leitura da Bíblia deva ficar reservada aos poucos que queimaram as pestanas a perscrutar os seus segredos. Todos os cristãos têm o direito e o dever de ler a Bíblia, que é o tesouro maior do Povo de Deus, repositório das verdades que o Senhor quis dar a conhecer aos homens e que são objecto da nossa Fé. Mas para uma leitura fecunda da Bíblia há que ter em conta certas evidências.
A primeira é a de que na Bíblia se cruzam vários géneros literários, e, como é óbvio, é diferente a intelecção de um poema, de um conto, duma narrativa histórica, de um livro de autoajuda. E de tudo isto encontramos exemplos na Bíblia. Como encontramos a narrativa épica ou o género apocalíptico. No Cântico dos Cânticos é fácil identificar um belo poema de amor. Mas já não o é tanto ver no livro de Job uma ficção, um conto. Lê-lo como se ele narrasse uma história realmente acontecida, é um erro, pois o que ali é mais importante é a “moralidade” – o epimythion das fábulas gregas – que é o que no caso realmente interessa ao autor sagrado.
Depois, há que ter em conta a finalidade da Bíblia que é a revelação de verdades religiosas e não o desvendar dos mistérios da ciência. Tomemos o caso do Génesis e da criação do mundo. Erradamente se tem oposto o criacionismo bíblico ao evolucionismo consagrado pela ciência. Alguma contradição entre a Bíblia e a ciência? Não, se nos lembrarmos que a Bíblia, dada a sua finalidade, se limita a ensinar, no quadro cultural do tempo, o quê da criação, enquanto a ciência se aplica a desvendar o como. A Bíblia ensina que tudo quanto existe foi criado por Deus, que é bom tudo o que Deus criou, que o aparecimento do homem é objecto duma especial atenção de Deus. A ciência dedica-se a descobrir o como do aparecimento de tudo quanto existe. E fala do big bang, fala da evolução, fazendo intervir realidades como o Acaso (?) e Lei dos grandes números entre outras. Mas não é por isso que Deus deixa de ser o Criador, pois a sua acção directa dá-se e esgota-se no surgimento do ser a partir do nada. O resto, como diz S. Tomás de Aquino, Deus entrega à acção das causas segundas. Como dia o Salmo, “O Céu é do Senhor; a Terra deu-a aos filhos dos homens”. Deus revelou, na linguagem que a cultura do tempo aconselhava, o que era necessário para que o homem percebesse o sentido da vida. O resto, quis o mesmo Deus que fosse o próprio homem a descobrir.
A ter em conta também o contexto cultural. Por exemplo, fala-se na Bíblia das águas inferiores a das águas superiores. Tudo fica claro quando pensamos que para os judeus desse tempo, a abóbada celeste era literalmente o telhado do mundo que impedia as águas de cima de inundarem a Terra. Quando esse telhado se rompeu, deu-se o dilúvio. Outro exemplo: diz-se nos Salmos que Deus perscruta o coração e os rins. Parece-nos destituída de sentido este interesse nefrológico do Criador. Até descobrirmos que, ao tempo, o coração era a sede do pensamento (como hoje é a sede dos afectos na linguagem dos apaixonados) e os rins a sede dos afectos. E assim por diante. O ideal era que nós pudéssemos captar no texto sagrado aquilo que os seus destinatários imediatos nele descobriam. Tomemos o mito de Caim e Abel. É evidente que ao tornar fratricida um dos filhos de Adão se quer significar que o mal introduzido no mundo pelo pecado do primeiro par humano continuou depois dele a difundir-se – e este será mesmo o ponto chave que se quer transmitir. Mas se, como referem alguns peritos, a raiz etimológica de Caim é a mesma de “ter” e a raiz etimológica de Abel é a mesma de “ser” (pormenor que de todo nos escapa) os primeiros leitores do mito terão percebido que o ter pode conduzir ao crime e que a superioridade moral do ser sobre o ter cria a fronteira entre a vida e a morte.
Ler a Bíblia pode ser uma verdadeira aventura do espírito para aqueles que estão habilitados a desvendar os seus segredos. Não será o caso do comum dos cristãos. Mas o que fica dito pode ser um convite a que os cristãos, para além de lerem, se dediquem a estudar a Bíblia. Há cursos de iniciação aos estudos bíblicos e há edições da Bíblia em que especialistas ajudam, com as suas anotações, a ultrapassar as dificuldades dos textos.
...E há a luz do Espírito Santo que não deixará de iluminar aqueles que, de coração limpo, abordam a Palavra de Deus.
J. Tomaz Ferreira