domingo, 26 de dezembro de 2010

POEMA DO MENINO JESUS

Num meio dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à Terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do Céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ela tinha fugido.
Com o segundo criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no Céu
E serve de modela às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas à cabeça
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
E depois, cansado,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de Tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos os dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinha
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair ao chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios e dos navios
Que deitam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer os olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Alberto Caeiro

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O SONO DE DEUS

Se há no mundo evidência inegável, é a existência do sofrimento. As causas do sofrimento humano são múltiplas, mas recondutíveis todas a duas grandes categorias: a Natureza, e o próprio Homem.
Todos os dias, ou quase, a comunicação social nos traz notícias de calamidades naturais com o seu cortejo de mortes e destruições: um tsunami na Ásia em que os mortos se contam por centenas de milhares e a destruição atinge níveis alucinantes; um terramoto no Haiti que praticamente não deixa pedra sobre pedra; vulcões que acordam e cujas torrentes de lava arrasam tudo à sua frente. Temos na memória as destruições do furacão Katrina, os estragos e as mortes das enxurradas na Madeira, e mais recentemente o flagelo do tornado que devastou Tomar e Ferreira do Zêzere. São apenas exemplos que poderíamos multiplicar.
Há depois as guerras, aquelas de que se fala e as que lavram esquecidas no continente africano, provocando a morte de inocentes e roubando aos meninos-soldados os sorrisos da infância, sem falar nos refugiados delas resultantes e que, por centenas de milhares foram deslocados das suas terras e vivem emprestada a vida que lhes chega da caridade internacional.
As epidemias e doenças, como a sida ou a malária de que a morte se serve para fazer a sua colheita sinistra, enchendo por milhões o seu celeiro de sombra nas terras onde a miséria não permite aos pobres aceder aos medicamentos que os poderiam salvar. E é a pobreza e a fome de tantos, vítimas da ganância de uns poucos favorecidos por uma ordem económica injusta que, do mesmo passo que permite a acumulação da riqueza nas mãos de uns tantos, priva outros do necessário para viver. Perante este espectáculo, parece que o Deus Providência adormeceu e tarda em acordar. E ocorre-nos a imprecação do Salmista: “Acorda, Senhor! Porque dormes? Acorda e não nos rejeites para sempre!” (Ps. 44, 24)
Será mesmo que Deus dorme? Mas como compaginar o sono de Deus com a imagem que d’Ele nos deixou Jesus quando disse que Deus toma conta de nós, e que até os cabelos da nossa cabeça Ele tem contados (Cf. Mt., 10, 30 et Mt., 5, 25 segs)?
Não há que negar: a existência do mal no mundo coloca quem tem fé perante o paradoxo de um Deus que, sendo bom, cria por amor e ama os seus filhos, do mesmo passo que permite sejam vítimas de tanto sofrimento. Muitos fogem do paradoxo caindo no absurdo da negação de Deus. Por mim, ao absurdo prefiro o mistério: a existência do mal no mundo é efectivamente um mistério que desafia o nosso entendimento a encontrar, se não a sua compreensão, uma certa inteligência dele que, sem o resolver, atenue pelo menos o seu aspecto paradoxal.
Em primeiro lugar, resulta da Bíblia que Deus não quis criar um mundo perfeito e acabado. E a teoria da evolução vio efectivamente confirmar esta perspectiva. Segundo a Bíblia, acabado de criar, o Homem recebeu de Deus a missão de dominar a Terra (cf. Gen., 1, 28), isto é, de continuar a obra de Deus e de a levar à perfeição. Os Salmos são muito claros: “O Céu, Deus reservou-o para Si; a Terra deu-a aos filhos dos homens”
(Ps. 118, 16). E, percorrendo a história, podemos constatar como, do trabalho dos homens, tem resultado uma notável diminuição do sofrimento humano. Para chegar a esta conclusão, basta olhar para os progressos da medicina e ver como as epidemias recuaram e hoje se curam doenças outrora letais. Mesmo nas catástrofes naturais, para além de haver meios de resposta outrora desconhecidos que permitem atenuar-lhes os efeitos, há já em alguns casos meios de previsão que permitem aos homens furtar-se à devastação.
Vivemos ainda numa sociedade injusta. Mesmo assim, temos de reconhecer os progressos feitos na consciência generalizada da dignidade humana e dos direitos que dela derivam.
É claro que a caminhada dos homens não é uniforme e o pecado continua presente no agir humano. É dele que nascem a calamidade das guerras e a loucura do terrorismo; é dele que nasce a exploração do homem pelo homem que gera a fome e a miséria. Mas não culpemos a Deus pelos desvarios dos homens que Deus quis livres: é a liberdade que faz a grandeza do homem; é da liberdade que nascem muitas das chagas que afligem a Humanidade.
Devemos desesperar? De modo nenhum. O caminho percorrido é de molde a alimentar a nossa esperança. E sabemos que, no fim, acontecerá a consumação da História – “os novos céus e a nova terra em que habita a justiça, segundo a Sua promessa” (2Petr., 3, 13).
É este o grande advento que somos chamados a viver. O sono de Deus é a vigília dos homens.
J. Tomaz Ferreira

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A TERRA E A SEMENTE

Ouvi um padre, que vivia o Evangelho, pregar o Evangelho.
Os pequenos, os pobres ficaram entusiasmados,
Os grandes, os ricos, escandalizados.
Pus-me a pensar que não seria preciso pregar muito tempo o Evangelho para que muitos dos que frequentam as igrejas se afastassem, e os outros as povoassem.
Pensei que para um cristão é um mau sinal ser estimado pela “gente bem”.
Bom seria, acredito, que eles nos apontassem com o dedo chamando-nos loucos e revolucionários,
Bom seria, acredito, que nos criassem embaraços, que assinassem protestos contra nós,
…que tentassem fazer-nos morrer.

Michel Quoist, Poemas para rezar

domingo, 21 de novembro de 2010

AS TRÊS UNÇÕES DE CRISTO

Quem percorrer o Antigo Testamento verificará que eram marcados com unções os chamados a desempenhar cargos ou missões relevantes na condução do Povo de Israel ou na sua representação. Era assim com os sacerdotes desde os tempos de Moisés que, seguindo as ordens de Deus, ungiu seu irmão Aarão, constituindo-o Sumo Sacerdote: “Tomarás o óleo da unção e derramá-lo-ás sobre a sua cabeça, ungi-lo-ás”(Ex. 29, 7). Foi assim com Saul que, escolhido por Deus para reinar sobre Israel, foi ungido por Samuel (Cf. 1Sam., 10, 1), como ungido foi David, que sucedeu a Saul como rei do Povo de Deus (Cf. 1Sam., 16, 13). Da unção profética fala Isaías referindo-se a si próprio: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa nova aos que sofrem” (Is., 61, 11). Temos assim que ungidos eram os Reis, os Sacerdotes e os Profetas.
Também Jesus foi ungido. Mais: se nos lembrarmos de que, na sua raiz grega, Cristo quer dizer justamente ungido, compreenderemos que, ao dizerem, como nós aliás, creio em Jesus Cristo, os primeiros cristãos tinham desta expressão uma compreensão mais rica do que aquela que hoje lhe emprestamos. Enquanto que para nós Jesus Cristo é apenas o nome do homem que temos por Filho de Deus e nosso salvador, para eles a palavra Cristo qualificava Jesus como o ungido por excelência, aquele em quem convergiam todas as unções. Isto é, proclamavam-no Rei, Sacerdote e Profeta. São as três unções de Cristo de que, e ainda mal, pouco ou nada se ocupam a pregação e a catequese actuais. E, no entanto, todas elas aparecem, e bem explícitas nos livros do Novo Testamento, e definem, inteira, a missão de Cristo no mundo.
Desde logo, a unção real. Interrogado por Pilatos sobre se era ou não rei dos Judeus, Jesus discorre sobre a sua realeza que diz não ser deste mundo (Cf. Jo. 18, 33-36). E Pilatos conclui: “Logo, tu és rei”. A resposta de Jesus é inequívoca: “É como dizes. Eu sou rei” (Jo., 18, 37).
Mas também a unção profética. Falando na sinagoga de Nazaré, a terra onde fora criado, Jesus aplicou a si próprio a passagem de Isaías que citámos, assumindo desse modo a condição de Profeta, e concitando contra si a ira dos seus conterrâneos que foi ao ponto de lhe quererem infligir a morte (Cf. Lc., 4, 16-30).
Do sacerdócio de Cristo não nos falam os evangelhos. Em compensação, a epístola aos Hebreus, proclama inequivocamente o sacerdócio de Cristo (“Este (Jesus) porque permanece para sempre, tem um sacerdócio sempiterno” – Hebr., 7, 24). Mais do que simples sacerdote, Jesus é mesmo o Sacerdote Supremo: “Temos um grande Sumo Sacerdote que atravessou os céus, Jesus, o Filho de Deus” (Hebr., 4, 14).
Rei, Sacerdote e Profeta, eis os três títulos que definem a missão de Jesus na Terra. Rei, para submeter a Deus todas as coisas e assim afirmar os Seu senhorio sobre a criação desviada d’Ele pelo pecado. Sacerdote, para ser o mediador entre os homens e Deus, para falar a Deus em nome dos homens: porque entre os homens o primeiro, e porque, sendo Filho de Deus, é por Ele aceite com entranhas de benevolência. Profeta, porque é o enviado de Deus para falar aos homens em Seu nome. Ao contrário do que comummente se julga, Profeta não é aquele que prevê e prediz o futuro. Pode fazê-lo também: os Profetas do Antigo Testamento fizeram-no em relação aos tempos messiânicos. Pedro e João, Apóstolos de Jesus, o fizeram também relativamente à consumação dos tempos. Mas o que define o múnus profético é o falar em nome de
Deus. Foi o que fez o ungido do Senhor ao anunciar aos homens a Boa Nova de que Deus os queria como filhos.
J. Tomaz Ferreira

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

SE… ENTÃO…

Se o homem não sabe caminhar, que não largue a mão da sua mãe.
Se receia cair, que permaneça sentado.
Se receia o acidente, que deixe o carro na garagem.
Se receia o assalto, que permaneça na trincheira.
Se receia que o pàra-quedas não se abra, que não salte.
Se receia a tempestade, que fique ancorado no porto.
Se receia não saber construir a sua casa, que a deixe em projecto.
Se receia enganar-se no caminho, que fique em casa.
Se receia o esforço, o sacrifício e o futuro, que renuncie a viver, e que o medroso e ensimesmado se feche no seu casulo…

ENTÁO…
Poderá, talvez, sobreviver, mas não será um homem, pois é próprio do homem poder, racionalmente arriscar a vida.
Poderá fingir amar, mas não saberá amar,
Pois amar é ser capaz de querer arriscar a sua vida
Pelos outros, por um outro.
Poderá gerar, mas não será nem pai nem mãe,
Pois ser pai ou mãe é, como a semente na terra, aceitar
o supremo risco de morrer, para que nasça a espiga.
Michel Quoist

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Igrejas de Portugal...

O nosso património cultural, em geral, está a degradar-se. O património religioso está lentamente a dissipar-se na fumaça da irresponsabiliadade.
Aqui fica o exemplo de uma bela igreja-capela no Torrão, Alentejo.

O SEU A SEU DONO

O problema de Deus não o tratou o velho Aristóteles no tratado da Física – mas sim no da Metafísica. Porque o problema de Deus está para além da Física. E esta não é uma afirmação gratuita: também no campo da Ciência deve valer o velho unicuique suum – a cada qual o que lhe pertence. Quando uma disciplina ultrapassa as fronteiras que a delimitam e vai além do seu objecto próprio, está a invadir propriedade alheia e a usar indevidamente os métodos que são seus em matéria onde eles não têm lugar e por isso falham.
A Igreja fez a aprendizagem dolorosa destas verdades quando, no caso Galileu, se pôs a fazer astronomia usando as ferramentas da Teologia. Deu no que se sabe, e ainda hoje lhe é atirado à cara o episódio como motivo de escárnio e descrédito.
Outros deveram não esquecer estes princípios e saber que a excelência duma disciplina não é garantia de bons frutos quando abordam problemas que não são do seu âmbito.
Vem isto a propósito da última obra do grande Físico Stephen Hawking, The Grand Design, em que o sábio explana a conclusão de que não é preciso recorrer a Deus para explicar o aparecimento do Universo.
Ao que leio em súmula de revista de fim de semana, “Deus não é necessário para criar o Universo” e “a criação do Universo foi espontânea e pode ser explicada pela Ciência”. Nada que não soubéssemos desde que, da sua cátedra da Universidade de Lovaina, o Padre Lemaître lançou a teoria do Big Bang explicação científica para o começo do Universo - sem acrescentar, apesar de padre católico, que fora Deus o autor do Big Bang – seria ultrapassar os limites da Ciência.
Mas é claro que o Big Bang pôde ser aproveitado pela ciência filosófica. Se outra ciência demonstrou que o Universo teve um começo, ficava claro que podia não existir
- donde, não tinha em si a razão da própria existência. Quando se nos depara algo que pode não ser, mas é, segue-se necessariamente a exigência de um ser que não pode não ser para explicar a existência daquele que pode não ser. É o problema do absoluto e do contingente: todo o contingente remete para um absoluto como causa última.
É este pequeno pormenor que escapa ao Físico. O mal é ele não parar nos limites da Física e continuar, com os instrumentos desta, a navegar em mar que não é o seu. Acontecem então coisas espantosas, verdadeiras pérolas de raciocínio non sense, como este de Hawking: “Porque há uma lei da gravidade, o Universo pode e vai criar-se a partir do nada”. Mas, se há uma lei da gravidade, levantam-se desde logo problemas de difícil solução. Como é óbvio, o nada é a negação absoluta do ser. Se há uma lei da gravidade, alguma coisa – e o nada desaparece. Então já não é a partir do nada, m as duma lei da gravidade que o Universo começa a existir. Quer dizer, antes de o Universo ser, havia já uma lei da gravidade. É difícil conceber uma lei da gravidade sem matéria sobre a qual ela se exerça…Mas não importa: o fundamental é sublinhar o contraditório da asserção. O Universo vem do nada, mas tem um autor que é a lei da gravidade. A agir retroactivamente – só pode – pois no princípio era o nada: não se vê como se pode atribuir acção, qualquer que ela seja, ao não ser…
Perdoem-me os leitores estas divagações metafísicas. Mas estou cansado de ver cientistas a botar sentença sobre temas que não cabem na sua ciência – pertencem a outras. E a adornarem as opiniões que expedem (e que respeito) com a fiabilidade que advém do prestígio científico. Achei que alguém devia dizer o óbvio: ne sutor ultra credidam.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

T E R F É

Fico sempre um tanto embaraçado quando me perguntam o que é ter Fé. A primeira tentação é atirar para a frente a definição do Concílio Vaticano I que me resguarda de quaisquer laivos de atrevimento menos ortodoxo. Segundo ela, a Fé é a “virtude sobrenatural, pela qual, com o auxílio da graça de Deus, acreditamos que são verdadeiras as coisas que Deus revelou, não por causa da sua verdade intrínseca apreendida pela luz natural da razão, mas por causa da autoridade de Deus que revela, e que nem se engana, nem pode enganar-nos”. (D. 1789)
A definição é perfeita, mas… sabe a pouco, sobretudo se nos lembrarmos de Abraão, o pai dos crentes, que efectivamente acreditou no que Deus lhe disse e, por via disso, mudou radicalmente a sua vida… Sabe a pouco, dizia, sobretudo se comparada com uma outra definição de autoridade ainda maior e que podemos colher na Epístola aos Hebreus. Aí, a Fé é definida como “a garantia dos bens que esperamos, a prova das realidades que não se vêem” (Hebr., 11, 11). Os bens que esperamos são, evidentemente a ressurreição dos mortos e a vida eterna – realidades que não se vêem, realidades futuras. Abraão iria rever-se nesta definição.
Comparando as duas definições, salta à vista que a primeira cinge a Fé ao conhecimento e, assim sendo, aprisiona-a na inteligência. A Fé é um fenómeno meramente gnoseológico. Não assim com a segunda em que não se trata de conhecer verdades, mas de possuir realidades concretas – de as possuir num futuro que a Fé antecipa para um presente em que são possuídas na Esperança que assim sorrateiramente se introduz no acto de Fé.
Assim, e no imediato da apreensão, a Fé crida do Vaticano I reconduz-se a um conhecimento abstracto de verdades. A Fé crida da Epístola aos Hebreus ultrapassa a gnose que é a posse apenas pelo conhecimento, para se fixar na esperança da posse plena que, remetida para o fim dos tempos, a Fé antecipa em Esperança certa: certa porque, casando as duas definições, Deus nem se engana nem pode enganar-nos.
Esta nuance no que respeita à Fé crida tem consequências na Fé crente. Na primeira, a Fé crente é um acto da inteligência – porque a Fé crida é uma gnose. Na segunda, encontra-se implicada a vida toda, já que a Fé crida é uma vida em antecipação da Vida que Deus prometeu.
Como é evidente, a Fé tem que ser pensada em função da Revelação – como claramente resulta da definição do Vaticano I. Ora, o que Deus revelou não foi propriamente um conjunto de verdades abstractas para a nossa elucidação. S. Paulo foi ao fundo da questão quando condensou toda a revelação no “mistério escondido desde sempre em Deus” (Col., 1, 26). Esse mistério escondido que ninguém nunca poderia entrever é a intenção que guiou o acto criador e depois toda a história que se lhe seguiu. Ao revelar-se aos homens, Deus partilhou com eles primordialmente não os mistérios do que é, mas aquilo que de mais íntimo e imperscrutável nele existe: o seu designo, as suas intenções. Deus disse aos homens que toda a sua actuação ad extra se orientava para uma única finalidade: o grande desígnio de fazer os homens felizes numa vida que não tem fim.
É esta partilha íntima que faz com que a revelação de Deus seja antes de tudo e acima de tudo, uma PROMESSA. Donde que o núcleo fundamental da Fé crida seja a promessa da felicidade eterna. Assim, a Fé crente não pode limitar-se ao conhecimento da promessa, mas à sua aceitação como boa, fiável, o que implica jogar a vida num desconhecido que tem como única garantia a Palavra de Deus. Nela entra a inteligência, mas entra muito mais – a vida toda. Ter Fé é fiar-se de Deus.

J. Tomaz Ferreira

terça-feira, 17 de agosto de 2010

DA ACTUALIDADE

Vós, diz Cristo Senhor Nosso, falando com os pregadores, sois o sal da Terra; e chama-lhes sal da Terra, porque quer que façam na Terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a Terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a Terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque a Terra se não deixa salgar, e os ouvintes, Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra, ou porque a Terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem do que fazer o que eles dizem; ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo, ou porque a Terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal.”
P. António Vieira,
Sermão de Santo António aos Peixes.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

R E Z A R

“Assola-me frequentemente, assim que digo uma ou outra das nossas orações, ou o Pai Nosso, a sensação de ser invadido por pensamentos tão fecundos, que renuncio a dizer as orações seguintes. Com efeito, quando tais pensamentos vêm, é preciso saber abandonar qualquer outra devoção para lhes dar lugar, os escutar em silêncio e não os contrariar em nada. Pois então é o próprio Espírito Santo que fala, e uma única das suas palavras tem mais valor do que mil das nossas orações.
Frequentemente, também aprendo mais orando do que estudando muito e reflectindo…Aquilo que disse há pouco a propósito do Pai Nosso, repito-o: se acontecer que o Espírito Santo se ponha a exortar-te interiormente, dando-te pensamentos ricos e luminosos, presta-lhe a honra de abandonar os teus próprios pensamentos, que não são senão as tuas reflexões e meditações pessoais. Escuta aquele que sabe mais do que tu. Presta atenção às suas palavras e transcreve-as: assistirás a milagres.”
Martinho Lutero
(cit. Por FANGEN Ronald, in Une révolution dans la chrétienté)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

CARIDADE E SOLIDARIEDADE

Se bem me lembro, a palavra solidariedade entrou no vocabulário corrente pelas mãos de António Guterres que, quando Primeiro-Ministro, dela fez uso intensivo.
Comecei por pensar que a solidariedade era a versão laica da caridade. Foi o P. Melícias quem me levou a pensar melhor, por causa do uso sistemático que também ele (frade de S. Francisco) fazia do vocábulo, ignorando sistematicamente a caridade. E concluí que a solidariedade seria afinal o valor em que se baseava o Estado Social, no qual, dos impostos de todos, sai a ajuda para os que supostamente mais precisam. O princípio foi levado às últimas consequências com a criação das SCUT em que todos pagamos a utilização por alguns das auto-estradas que os servem, mas, no caso, sem qualquer consideração pela real carência de meios dos utilizadores, que podem ser pobres, mas, em muitos casos, são ricos. É um caso de solidariedade cega em que todos, mesmo os pobres, são chamados a subsidiar alguns, mesmo ricos ou muito ricos.
Porque a solidariedade vertida no Estado Social é em muitos casos realmente cega e dela está ausente o calor da relação pessoa a pessoa que é a grande riqueza da caridade cristã.
Quer isto dizer que sou contra a solidariedade ou contra o Estado. De modo nenhum. Considero-o mesmo uma das maiores conquistas civilizacionais dos nossos tempos, e só lamento que a evolução do muno, nas suas vertentes económica e demográfica entre outras, ameace obrigar, se não ao seu desaparecimento, pelo menos a um redimensionamento indesejável, cujas dimensões futuras não é possível por ora determinar.
Isto dito, como cristão, um adepto estrénuo da caridade. Aquela caridade em que a partilha material dos bens brota do amor ao próximo, tradução do amor de Deus que foi infundido em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. (Cf. Rom., 5, 5) E custa-me que a ignorância, não isenta de presunção, leve alguns a formularem sobre a caridade afirmações bárbaras como a que a seguir transcrevo e que colho num artigo de homenagem a José Saramago (Cf. Expresso, 26 de Junho de 2010, Actual, pag. 19). São palavras da filha do escritor, Violante: “Aprendi com ele (Saramago) que a caridade é das piores coisas que existem. Porque se anuncia. Compra sempre qualquer coisa. Já a solidariedade é discreta. Muitas vezes esconde-se até. Mas existe”.
Saramago escreveu um “Evangelho segundo Jesus Cristo”; mas, ou não leu, ou fez uma leitura muito selectiva do Evangelho de Jesus Cristo, por exemplo, segundo S. Mateus. No capítulo VI desse evangelho, referem-se as palavras de Jesus sobre a prática da caridade que não me dispenso de transcrever: “Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles; de outra maneira, não tereis nenhuma recompensa de vosso Pai que está no Céu. Quando, pois, deres esmola. Não permitas que toquem trombetas diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita, a fim de a tua esmola permaneça em segredo; o teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te”. (Mt., 6, 1-4).
Inútil comentar.

J. Tomaz Ferreira

terça-feira, 15 de junho de 2010

DA SS.ma T R I N D A D E

O depósito da Fé que os crentes professam no seio da Igreja Católica está cheio de mistérios que a inteligência humana não consegue compreender. Por isso se diz que o acto de fé não é um acto racional, mas apenas razoável. Uma das tarefas que ocupou a Igreja, nomeadamente nos primeiros séculos da sua existência foi o esforço de formular em termos humanos os dados desses mistérios de modo a que eles pudessem ser, não compreendidos, mas expressos na clara fidelidade ao dado revelado: o que se pretendia era a formulação do mistério e não a sua compreensão. Esta tem a Igreja consciência de que não pode ser conseguida: compreender é delimitar, verbo que não pode ser conjugado quando se toca no Infinito.
Um dos mistérios mais sublimes é o que se designa por mistério da SS.ma Trindade: é básica e fundamental na fé cristã a crença em um Deus único que, sendo uno, subsiste em três pessoas iguais e distintas. Como diz a liturgia, os cristãos adoram a Deus “não na unidade de uma só pessoa, mas na trindade de uma única substância”. Pai, Filho e Espírito Santo são os nomes por que se designa a Trindade em que Deus subsiste: chma-se-lhes as três pessoas divinas. Cada uma delas é Deus, sem que por isso haja três deuses. As três pessoas são iguais, subsistindo todas na mesma substância divina ou subsistindo em cada uma delas a mesma substância divina. O que não as impede de serem distintas, sendo que o Pai não se confunde com o Filho nem com o Espírito Santo, como o Filho não é o Pai nem o Espírito Santo, e este não é nem o Pai nem o Filho.
Subsistindo em três pessoas, Deus não é o resultado final da junção das três como se cada uma delas fosse uma parte de Deus e Deus a soma das partes. Cada uma delas é Deus por inteiro; mas Deus inteiro não pode prescindir de qualquer delas. Iguais na mesma substância divina, não há nelas “mais” ou “menos”; não há subordinação nem dependência: há igualdade absoluta que não destrói a distinção que faz com que cada uma não seja a outra.
O enunciado que aí fica representa, a ser (como cremos) verdadeiro, um desafio imenso à inteligência, que pode aceitar o mistério pela fé, mas não pode compreendê-lo pela razão. De resto, a aceitação do mistério de Deus, mais do que ao seu entendimento apela à sua adoração. Se temos fé suficiente para aceitar o mistério, então busquemos na humildade da adoração a atitude certa para lidar com ele, na esperança de que a visão de Deus face a face que nos está prometida para a vida eterna nos permita a inteligência possível do mistério que a nossa finitude por ora nos recusa.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A P A L A V R A C E R T A

A descoberta em vários países de casos de pedofilia envolvendo membros do clero e, ao que se diz, até um que outro bispo, deu azo a que os meios de comunicação exercessem com veemência e indignação o seu dever de denúncia, apontando à Igreja Católica o dedo acusador – e com razão. Para além dos casos já de si vergonhosos, a Igreja pôde ser acusada de, encobrindo-os, ter pactuado com o crime que devia ter sido a primeira a reconhecer, assumindo coram populo as consequências que se impunham. Não o fez, penso que em nome da velha preocupação de evitar o escândalo. Erradamente. S. Gregósio Magno, um Papa santo da Alta Idade Média, enunciara há muitos séculos a norma de conduta a seguir pela Igreja em casos que tais: “Se da verdade nascer o escândalo, suporte-se o escândalo, mas não se abandone a verdade”.
Felizmente, as coisas estão hoje clarificadas, e, perante os escândalos de pedofilia do clero, a posição da Igreja não oferece dúvidas: antes de mais, o reconhecimento dos factos; depois, a averiguação da sua veracidade, como se impõe; finalmente, o procedimento exigido pela justiça no interior da mesma Igreja e a colaboração com as autoridades no plano da justiça extra-eclesiástica. Penso que, para que aqui se chegasse, alguma coisa deve ter contribuído o alarido mediático que se fez à volta do problema.
Não faltou quem atribuísse tal alarido a uma conspiração de forças estranhas inimigas da Igreja que daqui colhiam a oportunidade para a atacar. Não tenho dúvidas quanto à existência de forças que tais, e acredito que, segundo a palavra de Cristo, a Igreja há-de sempre confrontar-se com a sanha das perseguições. Mas não foram essas forças que empurraram os membros do clero para a prática da pedofilia. E é nela que está a raiz do problema. Por isso, oportunas e decisivas foram as palavras de Bento XVI quando arredou a ideia de campanha adversa e apontou como cerne da questão o pecado da Igreja que por ele deve fazer penitência e para ele deve buscar justiça.

É hora de lembrar como a história da Igreja ensina que na base de todas as crises que ao longo dos séculos têm varrido o Povo de Deus se encontra sempre o pecado – o pecado que é uma constante na vida desse Povo desde o início. Uma visão idealizada da vida dos primeiros cristãos levou-nos por vezes a considerá-los imaculados e em tudo exemplares. Não era assim, não foi assim: é o que facilmente se conclui da leitura dos Actos dos Apóstolos que certamente não fixaram para nós todos os casos de pecado, mas só os que podemos considerar exemplares. E lá encontramos a hipocrisia de Ananias e Safira (Act., 5, 1-5) a par da perversão de Simão, o Mago, que com dinheiro pretendia adquirir dons sobrenaturais que são dádivas de Deus e não bens transaccionáveis (Act.,8, 18-24). É o pecado de simonia que tantas vezes se havia de repetir ao longo da vida da Igreja e que, ou muito me engano, ou está longe de se encontrar erradicado da Igreja de Deus.
As Epístolas de S. Paulo dão conta de muitas situações de pecado nas comunidades por ele fundadas: em Corinto, casos de incesto (1Cor., 5, 1-2) e de devassidão (1Cor., 5, 9-13); em Tessalónica, “vida desordenada e ociosa” (2Tess., 3, 6 segs). S. Paulo não teoriza quando, escrevendo a Timóteo, o alerta para a existência de “invejas, rixas, injúrias, suspeitas maldosas, altercações” (1Tim. 6, 4).
Os primeiros concílios (Éfeso, Niceia, Constantinopla – para não falar do de Jerusalém) fizeram-se para resolver crises graves que eclodiram na Igreja como fruto do pecado daqueles que, abandonando a sã doutrina, ameaçavam perverter a fé da Igreja, tal como ela a bebera no depósito da Revelação.
E é sempre o pecado, nas suas várias formas, que encontramos a determinar as grandes crises que abalaram a Igreja ao longo dos séculos. Em comparação com essas crises, bem pode dizer-se que a “crise” actual, gerada pela pedofilia, não passa de um fait divers menor na história da Igreja. Pensemos no cisma do Oriente que partiu em duas a Cristandade e que, mau grado os esforços recentes, está longe de se encontrar reparado. Na sua raiz está, de um lado a ambição de Constantinopla e a sua emulação com Roma em matéria de primazia; do outro, a resposta, certa na essência mas eivada de arrogância no modo com que Roma defendeu o Primado da Sé de Pedro.
Foi ainda o pecado em que viviam e persistiam os Papas e a sua Cúria nos tempos do Renascimento que determinou a divisão da Igreja do Ocidente com o afirmar-se das cisões calvinista, luterana e anglicana (simplificando, claro está), que definitivamente pulverizaram o bem precioso da unidade da Igreja, um bem que foi objecto duma súplica explícita de Jesus ao Pai: “Que todos sejam um, como Tu, Pai, és um em mim e eu em Ti, para que também eles sejam um em nós”. (Jo., 17, 21).
De facto, a história da Igreja é também a história dos pecados dos homens que a constituem, e da força santificadora do Espírito Santo que a anima. Do pecado nascem sempre, e para toda a comunidade, consequências nefastas. Mais forte porém do que o pecado, do que todos os pecados, é a força redentora do sacrifício de Cristo na cruz. É essa força que há-de vencer sempre os malefícios do pecado sobre a Igreja. Segundo a promessa do Senhor, “as portas do Inferno não levarão a melhor”.

J. Tomaz Ferreira

domingo, 9 de maio de 2010

A P E D R O O Q U E É D E P E D RO (O poder das chaves)

“Afinal, não foi só um homem que recebeu essas chaves, mas a Igreja na sua unidade. Então, é esse o motivo da preeminência reconhecida de Pedro: ele representava a universalidade e a unidade da Igreja quando lhe foi dito “confio-te”, o que na verdade foi confiado a todos. Desejo demonstrar que foi a Igreja que recebeu as chaves do Reino dos Céus. Ouçam o que o Senhor diz a todos os Apóstolos em outra passagem: “Recebei o Espírito Santo”; e imediatamente: “Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; aqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos” (Jo., 20, 22-23). Isso refere-se às chaves, das quais é dito: “Tudo o que ligares na Terra será ligado no Céu” (Mt., 16, 19). Mas isso foi dito a Pedro… Na ocasião, Pedro representava a Igreja universal.”

S. Agostinho, Sermão 295 – na Festa do Martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo

quarta-feira, 5 de maio de 2010

D I S T R A C Ç Õ E S

Folheando uma revista inquestionavelmente católica (é dirigida por um bispo) deparei com um artigo assinado por um membro duma Congregação Religiosa onde se escrevia: “Como pode a Igreja responder a tudo isto? Fiel à missão de estar ao lado do Povo de Deus… etc.” Colocar a Igreja ao lado do Povo de Deus é fazer dela uma realidade distinta desse mesmo Povo – o que é errado, pois a Igreja é justamente o Povo de Deus, como inequivocamente foi afirmado pelo Concílio Vaticano II. A “distracção” não é de todo inócua: ela repristina um conceito de Igreja até há pouco dominante, em que a Igreja propriamente dita era apenas o clero e as ordens religiosas. No fundo revela que a pecha do clericalismo, de tão nefastas consequências, não se encontra vencida e está pronta a reaparecer a qualquer momento. Há “distracções” que são eloquentemente reveladoras…
Quando se celebram efemérides em honra de um sacerdote, julgo que ainda hoje se canta um hino que ouvi (e cantei) muitas vezes quando era novo. Rezava assim: Aleluia! Hossana e glória / cantemos hinos à flux / em louvor do sacerdote / que é na terra outro Jesus. Outra “distracção” que tem a mesma raiz, que se manifesta no “endeusamento” do clero. Ora, com todo o respeito, o sacerdote não é propriamente “outro Jesus”, pelo menos não o é mais do que qualquer outro cristão. É apenas um servidor da comunidade a que preside e que, ela sim, é outro Jesus, por constituir aquilo a que Pio XII chamou em Encíclica o Corpo místico de Cristo.
Também já vi na celebração do jubileu de um padre aplicar a ele e aos seus irmãos no sacerdócio, com carácter exclusivo, a frase tremenda de Cristo: “Vós sois o sal da Terra; se o sal perde a força, com que se há-de ele salgar? Para nada mais serve senão para deitar fora e ser pisado pelos homens” (Mt., 5, 13). Ora, a missão de ser o sal da Terra cometeu-a Cristo não apenas aos sacerdotes, mas a quantos acreditam no seu nome e se reconhecem como discípulos seus. Basta ler com atenção o capítulo 5 de S. Mateus: o sermão que ali se refere foi dirigido a todos os que seguiam Jesus. “Vendo a multidão, Jesus subiu ao monte, e, tendo-se sentado, vieram ter com ele os seus discípulos a quem ensinou, dizendo…” /Mt., 5, 1-2). É mais uma vez o clericalismo a espreitar com dois efeitos altamente perversos: carregar nos ombros do clero a missão hercúlea de salvar o mundo; desresponsabilizar os baptizados da missão profética que lhes foi cometida no Baptismo.
Em tempo de visita papal, valerá a pena apontar algumas “distracções” que transparecem nos títulos com que se adorna o Bispo de Roma. Não o fazemos ad odium, mas com o respeito que merece aquele que preside à comunhão universal da caridade, e é, como tal, a referência visível da unidade da Igreja.
Comecemos pela “distracção” que é tratar o Papa como Chefe de Estado, portanto como um soberano temporal, pouco importando se de um macro ou, como é o caso, de um micro Estado: é esta condição de Chefe de Estado que faz dele o Soberano Pontífice. O ponto é que a grandeza do Papa lhe vem de presidir o Reino de Deus e, diante de Pilatos, Jesus afirmou taxativamente: “O meu reino não é deste mundo”(Jo., 18, 36).
Fruto de outra “distracção” é o título que lhe atribuíram de Vigário de Cristo. Vigário é aquele que representa e faz as vezes de um ausente. Ora, é bom não esquecer que Cristo continua presente, incarnado, desde que subiu ao Céu, no seu Corpo místico que é a Igreja – a sua humanidade de acréscimo – de que Ele é a cabeça e que continua a sua missão salvífica. É verdade que a ausência física do Mestre iria gerar nos discípulos um sentimento de orfandade (Cf. Jo., 14, 18). Ciente disso, Jesus prometeu enviar o Espírito Santo: “Eu apelarei ao Pai e Ele vos dará outro Paráclito para que esteja sempre convosco, o Espírito da Verdade” (Jo., 14, 16-17). Este outro, sim, vai fazer as vezes do primeiro que o contexto claramente indica ser o próprio Jesus. A Pedro (de quem o Papa é sucessor) fica reservado não o papel de fazer as vezes de Cristo, mas de confirmar na Fé os seus irmãos – porque (e esta é a grandeza de Pedro) a sua fé não desfalecerá (Cf. Lc., 22, 32).
Sumo Pontífice é outro dos títulos que se aplica ao Papa. Passando por alto a mais que discutível pertinência teológica do título, à luz nomeadamente do que de Cristo se diz na Epístola aos Hebreus, sublinhe-se a “distracção” que fez esquecer a espúria origem do título. De facto, Sumo Pontífice é a tradução de Pontifex Maximus, a expressão latina com que os Papas do Renascimento assinavam os monumentos que em Roma iam fazendo erguer. Mas Pontifex Maximus era o título por que, desde o legendário rei romano Numa Pompílio, se designava o chefe do colégio dos sacerdotes que em Roma asseguravam o culto das divindades pagãs. Nos tempos do Império os imperadores apropriaram-se dele para marcarem que, também no campo religioso, era sua a autoridade máxima. Quando o cristianismo se impôs no Império, o título transferiu-se do imperador para o Bispo de Roma. O mínimo que se pode dizer é que o título é espúrio na sua origem, e de discutível solidez teológica: nada tem de cristão e muito menos de evangélico.
Rejeitando os títulos que remetem para a grandeza, a pompa e a vaidade das coisas do mundo, é melhor ver no Papa apenas o sucessor de Pedro, que morreria de espanto se visse aplicados a si os títulos que enunciámos. O título que Pedro certamente prezaria é aquele que, na sequência dos seus predecessores, Paulo VI utilizou para promulgar os documentos do Concílio Vaticano II: PAULO, BISPO, SERVO dos SERVOS DE DEUS.

J. Tomaz Ferreira

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O R A Ç Ã O


Mãe, aqui tens os teus filhos com sua imensa tropa
Para serem julgados não pela só miséria.
E Deus que ajunte a tudo um pouco desta terra
Que tanto os tem perdido e deles tão amada.

Mãe, aqui tens os teus filhos que tanto se perderam
Para serem julgados não só da baixa intriga.
E que Deus os soerga como crianças pródigas.
Que venham desabar nos seus braços erguidos…

Que não sejam julgados como puros espíritos
Que não sejam pesados pela balança justa
Que sejam como a vinha e o trigo maduro
Que nunca são medidos no flanco da colina…

Que Deus seja clemente e que assim lhes perdoe
O tanto terem querido à terra passageira
Porque dela eram feitos. Dessa lama e areia
Que jaz na sua origem, e tristemente os coroa.


Ch. Péguy

domingo, 18 de abril de 2010

OS ARTÍFICES DA CRIAÇÃO

Quando vou à Missa, recito convictamente as palavras do Credo. Eu creio, de facto, em “Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Mas nem por isso alinho com os chamados “criacionistas”, para quem tudo quanto existe no mundo foi modelado directamente por Deus. Tenho sempre presentes as judiciosas palavras do velho e sensato Tomás de Aquino que, do fundo da Idade Média, nos prevenia de que “Deus age através das causas segundas”. E isso me faz aceitar com toda a naturalidade a posição dos evolucionistas para quem o mundo, tal como o conhecemos, é o resultado de um processo lento e longo de transformações sucessivas, que conduziram ao aparecimento da vida e ao desdobrar da mesma na imensidão de espécies que hoje conhecemos. O facto de terem surgido através do referido processo de evolução em nada prejudica o facto de serem todas (de sermos todos) criaturas de Deus, fruto do Seu querer e obra das Suas mãos. As forças que as produziram e nos produziram mais não foram do que as causas segundas, através das quais Deus foi realizando a Sua obra.
Os cientistas que estudam o mundo nunca falam de Deus. Nem têm que falar. O seu campo de acção está limitado ao que é “observável”. E o que lhes é dado observar é a matéria, as suas acções e as interacções dos seus elementos. E estas não denunciam Deus. Os cientistas cingem-se ao “como” que observam e não têm que se preocupar com o “porquê” último. Em matéria de”porquê”, limitam-se a apontar as causas próximas. Como agora: há uma nuvem de poeira que impede a navegação aérea no norte da Europa porque um vulcão entrou em erupção na Islândia e os ventos arrastaram as cinzas expelidas na direcção em que sopravam.
Quando confrontados com os fenómenos evolutivos observáveis, são minuciosas a explicar o como, mas ao debruçarem-se sobre o “porquê”, esbarram no desconhecido e chamam em seu auxílio o acaso. E o acaso é, como sabemos, e por definição, o imprevisível, o imponderável. Einstein dizia que “o acaso é o pseudónimo que Deus usa quando não quer ser reconhecido”, Mas não vamos por aí. Atendo-se ao observável, verificaram os cientistas que, no ciclo imenso da evolução, a matéria escolhe sempre a direcção que vai num determinado sentido. Chamam a isto “teleonomia” - uma lei intrínseca à matéria que a orienta e faz avançar no sentido da consecução duma determinada finalidade. Um filósofo substituiria o termo teleonomia por teleologia, introduzindo no processo um elemento de inteligência, postulado pela própria noção de finalidade. Damos de barato que o cientista não tenha que o fazer. Não lhe cabe. E fiquemo-nos, como agentes da evolução, com um acaso teleonómico, desprezando o leve toque de contradição que a expressão acorda em nós.
Mas o mundo que hoje se depara aos nossos olhos já não é apenas o fruto do acaso das interacções que ditaram as proezas da evolução. Incorpora, e de que maneira, a acção do homem – por força da sua liberdade, tão imprevisível e imponderável, senão mais, do que a acção do acaso. Com uma agravante: a teleonomia, que os cientistas admitiram como guia da acção do acaso na evolução da matéria, não é transponível tout court para a acção do homem. É que, dotado duma inteligência auto-consciente, o homem tem a capacidade de estabelecer finalidades próprias e de orientar a sua acção para a consecução dessas finalidades. E não está dito que as definidas por miríades de mentes auto-conscientes sejam entre si coerentes, e muito menos que concordem no seu conjunto com a teleonomia que, segundo os cientistas, guiava o evoluir das forças da matéria… De facto, com o aparecimento do Homem, tudo se complica. Ao aleatório da evolução gerada pelo acaso, vem juntar-se o aleatório sublimado da vontade livre do Homem.
Assim, o termo final da evolução do Universo – e seria absurdo negar que esse termo final exista, no sentido pelo menos de “acabamento”, de “per-feição” no sentido etimológico do termo –antevê-se como o resultado de duas forças aleatórias – o acaso, e a vontade livre do Homem.

A Sagrada Escritura diz que, obra de Deus, a criação proclama a Sua glória e o Seu poder. É para defenderem essa glória e esse poder que os criacionistas querem que tudo quanto existe tenha sido directamente tocado pelo dedo de Deus. Confesso que a visão de Tomás de Aquino em que Deus age pelas causas segundas me parece potenciar muito mais a grandeza de Deus. Fazer o mundo por si próprio seria tarefa muito menos arriscada do que escolher per-fazê-lo através do aleatório do acaso e do super-aleatório da vontade livre dos homens.
J. Tomaz Ferreira

sábado, 27 de março de 2010

A MORTE DA MORTE

Nosso Senhor morreu, mas matou a morte. Nele terminou o que era causa de nossos temores. Tomou a morte e venceu-a como caçador vigoroso que se apossa do leão e o abate.
Onde está, pois, a morte? Procurai em Cristo, nada dela resta. Nele, contudo, esteve, mas está morta. Oh! Vida, morte da Morte! Tenhamos coragem, meus irmãos, a Morte morrerá em nós também. O que na cabeça começou, nos membros prosseguirá: a Morte morrerá em nós também. Morrerá quando chegar o fim dos séculos, na ressurreição dos mortos…
Ouçamos os clamores de triunfo de quando morte mão houver, de quando,em nós, como em nosso Chefe, morrer a Morte. É necessério, diz o Apóstolo S. Paulo, que este corpo da corrupção se revista da incorruptibilidade, e que, mortal, se revista da imortalidade. Então se cumprirá a palavra da Escritura: A morte foi afogada na vitória! (1Cor., 15, 53-55). Glória! Glória aos triunfadores! Morte, onde está o teu aguilhão? Com ele te pudeste apoderar, agarrar, vencer e subjugar, atingir e matar; mas agora, Morte, onde está a tua vitória, onde está o teu aguilhão? Não to quebrou o meu Senhor? No momento em que abraçaste o meu Senhor, nesse mesmo momento para mim também vencida foste e destruída.
Santo Agostinho, Sermão 233

quinta-feira, 18 de março de 2010

S O N E T O - (em tempo de Paixão)



Se sois riqueza, como estais despido?
Se Omnipotente, como desprezado?
Se Rei, como de espinhos coroado?

Se luz, como a luz tendes perdido?
Se sol divino, como eclipsado?
Se verbo, como é que estais calado?
Se vida, como estais amortecido?

Se Deus, estais como homem nessa cruz?
Se homem, como dais a um ladrão
Com tão grande poder posse dos Céus?

Ah! Que sois Deus e homem, bom Jesus!
Morrendo por Adão enquanto Adão,
E redimindo Adão enquanto Deus.

Anónimo

EM TEMPO DE PAIXÃO

Fartinhos como estamos de ouvir falar do Mistério Pascal, corremos o risco de o dar como adquirido para os cristãos que na morte realizado de forma definitiva e irrepetível. Cristo morreu e ressuscitou. É da vida que nos ganhou com a sua morte que nós vivemos – é na esperança que nos deu a sua ressurreição que caminhamos pelo mundo em direcção ao Pai. Nada a fazer, portanto, para além de gozarmos do Mistério Pascal de Cristo as certezas que Ele nos trouxe.
Pois, se o mistério pascal de Cristo foi definitivo e irrepetível, não penso que esteja acabado. Direi mesmo que se encontra profundamente incompleto, e que poderá ter laivos de fracasso se não for completado, se ficar reduzido às dimensões do Cristo físico.
E valho-me da companhia de S. Paulo para esquivar a acusação de blasfémia. Pois, se eu blasfemo, nada mais faço do que repetir a divinamente inspirada blasfémia que ele proferiu quando escreveu: “completo na minha carne… o que falta à Paixão de Cristo”. Se completa, o que falta é que nem tudo está feito – é preciso que alguém o termine.
Não foi blasfemo S. Paulo, porque, subido ao Céu, o Cristo do Mistério Pascal continua a viver o mesmo mistério – a completá-lo – na sua dimensão mística. A obra de Cristo prolonga-se no Cristo místico que é a Igreja – que somos nós – e julgo mesmo que é este prolongamento que lhe confere a sua dimensão total.
E até compreendemos que assim seja: afinal, os cristãos prolongam Cristo – é lógico que na sua vida “aconteça” mistério pascal. E pensamos nos mártires em quem a evidência desse mistério se impõe. E talvez pensemos que foram cristãos com sorte, porque chamados a repetir o mistério do seu Senhor: tiveram a oportunidade de “perder a vida ara depois a encontrarem como Cristo.
Acontece que nem todos merecem a graça do martírio. Mas sendo o mistério pascal algo de tão fundamental. Ele tem que se encontrar ao alcance de todos os cristãos. E encontra: basta sabê-lo descobrir. Não será morrer um pouco passar a vida a dar testemunho, numa linha de coerência com o Evangelho, arrostando os riscos de sofrimento, de cansaço, de mortificação? Não será morrer um pouco dedicar-se a fazer o bem, sacrificando, por amor dos outros, tempo e comodidades?
E não será recusar o mistério pascal pretender furtar-se aos sacrifícios ou deixar-se vencer pelo desânimo, ou servir apenas quando isso nos traz satisfações humanas?
Pois eu penso que se o espectacular dos martírios sangrentos serve para edificar a Igreja, não é deles que devemos esperar o seu crescimento no dia a dia dos séculos. É o mistério pascal dos cristãos escondidos, cujos nomes não hão-de figurar nas páginas do martirológio que realiza, na humildade e no escondimento, o mistério da vida da Igreja a brotar daquele “morte” feita de todas as renúncias e de todos os sofrimentos que a dedicação lhes impõe.
É na fidelidade ao ideal do AMOR cristão que havemos de fazer o “mistério pascal” das nossas vidas.
J. Tomaz Ferreira

sábado, 13 de março de 2010

EM LOUVOR DA SANTA CRUZ

Nos seus quatro braços, a Cruz de Cristo contém tudo:
tudo o que existe no Céu, na Terra e sob a Terra;
todo o visível e o invisível, todo o vivente e o não vivente.
Os quatro braços da cruz, com os seus quatro quadrantes,
expõem assim o mistério onde encontram seu ser
todas as criaturas racionais, celestes, terrestres, infernais e supra-celestes…
A Paixão de Cristo sustém tudo o que é real, ela rege o mundo, ela cega o Tártaro…
Ela mantém o que existe, conserva o que vive, anima o que sente, ilumina o que pensa.
Pelo seu poder, a Santa Cruz rodeia, comprime,
une entre si todas as realidades do alto e cá de baixo, na veneração de Cristo.

Santo Hipólito

segunda-feira, 1 de março de 2010

Deus e o Mal

Estes últimos tempos têm sido férteis em calamidades naturais que ceifaram vidas e semearam a destruição um pouco por toda a parte. Indo apenas às mais recentes, vêm-me à memória um terramoto no Haiti onde as vidas perdidas se contam por centenas de milhares, e o desespero dos sobreviventes, perante a magnitude da destruição, parecia um dedo acusador apontado a Deus supostamente bom, e que, no entanto sujeitava os seus filhos a tão grande sofrimento. Mais perto de nós foi a tragédia da Madeira que a todos nos enlutou, e a que logo se seguiu o terramoto do Chile, e outro ao lado na Argentina. Isto para não falar da tempestade que nos varreu e que em França fez contar por dezenas o número de vítimas mortais. São apenas alguns episódios recentes duma realidade que tem acompanhado o homem ao longo de toda a sua caminhada sobre a Terra. E levantam um problema que atormenta muitos espíritos: como conciliar a existência de um Deus bom, criador do mundo, com a ocorrência de tanto mal de que o homem não tem culpa? Será crível que a bondade de Deus possa coexistir com o mal que ocorre no mundo? É que a grandeza do Universo aponta como autor um Deus omnipotente e omnisciente que, por definição terá de ser infinitamente bom, um Deus que “é amor”, na definição do Apóstolo S. João. Mas todo o mal que acontece no mundo não virá contradizer essa imagem de Deus-Amor, não virá impor a inexistência de Deus? Muitos tentam arquivar o problema apelando para a justiça de Deus. Este (dizem) é bom, mas justo também e, como tal deve premiar o bem e castigar o mal. As catástrofes que se abatem sobre a Terra são o castigo que Deus envia para punir os pecados cometidos pelos homens e que bradam aos Céus pedindo justiça, como o sangue de Abel derramado por Caim. Mas a explicação cai por terra quando se verifica que o suposto castigo atinge o justo como o pecador, além de dar de Deus a imagem de um ser vingativo e castigador que não casa com o Deus-amor que a Bíblia consagra. Por mim, não penso ter encontrado a chave da solução para o problema. Mas parece-me que, perante ele, a clara opção que se me impõe é a de escolher entre o mistério e o absurdo, sendo que o mistério é a conciliação da bondade de Deus com o mal no mundo, e o absurdo seria a eliminação do problema pela eliminação de Deus como criador. Dar como não tendo causa um Universo a que hoje a ciência marca um momento em que começou a existir, e que, por isso mesmo, se tem de considerar contingente, visto não ter em si a razão da própria existência (a tê-la deveria ser eterno – logo sem começo) é, na plena acepção do termo, um verdadeiro absurdo. Já a conciliação duma causa do mundo em que a infinita bondade não impede que na sua obra se introduza o factor “mal” é um mistério para que não se encontra explicação, mas para o qual a luz da inteligência humana (sempre limitada, note-se bem) pode entrever janelas de inteligibilidade. Uma delas reside no facto atestado pela Bíblia (e pela experiência) de Deus não ter querido criar um mundo per-feito no sentido etimológico da palavra, isto é, um mundo acabado. A tarefa de completar a criação do mundo confiou-a Deus às forças da matéria, e muito especialmente ao homem. Da acção daquelas é testemunha a evolução, hoje universalmente admitida. Da acção do homem dá testemunho toda a sua história. Desde o princípio, segundo a Bíblia, Deus confiou ao homem a tarefa de “dominar a Terra”. E o que é senão o domínio da Terra aquilo que o homem tem feito ao longo dos séculos? Aquilo a que genericamente damos o nome de “progresso” mais não é do que o avançar inexorável do homem para patamares cada vez mais elevados de domínio da natureza. Não me atrevo a dizer que algum dia o homem adquira o domínio perfeito das forças da natureza, como os vulcões, os terramotos, os fenómenos atmosféricos. Força é constatar que, mercê dos progressos já feitos, a humanidade dispõe hoje de meios que lhe permitem tornar menos devastadores aqueles fenómenos. Razão de optimismo vemo-la no combate à doença. O homem não conseguiu nem conseguirá eliminar a morte. Mas os progressos da medicina fizeram com que tenha sido notavelmente estreitado o seu campo de acção. É que, como dizem os Salmos, “o Céu é do Senhor; a Terra deu-a aos filhos dos homens”. Que estes continuem o seu labor de dominar a Terra, e o mal irá progressivamente regredindo.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Passo a rezar...

Nós, os católicos, começamos, finalmente a entender, onde estão os actuais e futuros suportes de evangelização.
Claro que há católicos mais rápidos que outros.
Aqui vos deixo um (bom) exemplo de como se pode ajudar muitissimo os cristãos a rezar no mundo:

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

VER DEUS FACE A FACE



A meu ver, nenhum sacrifício é demasiado grande
Para ver a Deus face a face.
A minha actividade, seja ela social, política, humanitária ou ética,
Está orientada, toda ela, para este único objectivo.

Como eu sei que Deus se encontra as mais das vezes
Entre as mais humildes das Suas criaturas,
E não entre os grandes e poderosos,
Eu luto por me colocar ao nível dos primeiros.
Ghandi

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

AS RAIZES DA VIOLÊNCIA

Riqueza sem trabalho,

Prazer sem consciência,

Conhecimento sem carácter,

Comércio sem moralidade,

Ciência sem humanidade,

Adoração sem sacrifícios,

POLÍTICA SEM PRINCÍPIOS
Gandhi

sábado, 6 de fevereiro de 2010

C A T Ó L I C O P R A T I C A N T E

O que se deve entender por católico praticante? Naturalmente, aquele que cumpre os seus deveres religiosos, a saber, os que derivam do facto de ser cristão.
O cristão é, antes de mais, um crente, uma pessoa de Fé. O objecto da sua Fé é a pessoa de Jesus. Retomando a simples e brevíssima fórmula das primitivas comunidades cristãs, aquele que acredita em Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador, e a Ele adere para ser salvo. Porque a Fé não envolve apenas a inteligência. Mais do que a aceitação intelectual duma verdade ou de um conjunto de verdades abstractas, a Fé é a adesão a uma pessoa que se apresenta como salvador. Ter Fé é ser discípulo de Cristo, seguir as suas pisadas, conformara a própria vida ao que foi a vida de Jesus. Aliás, a missão que Jesus confiou aos seus discípulos não foi propriamente a de “ensinar todos os povos” como resulta duma deficiente tradução de Mt., 28, 19. O que lá se diz é “de todos os povos fazei discípulos”.
Assim, o católico praticante é aquele que conduz a sua vida seguindo os passos de Jesus, deixando-se orientar pelos valores que Jesus traduziu na sua própria vida. Esses valores é possível lê-los nos ensinamentos de Jesus, mas encontrá-los também no seu proceder, No episódio das tentações de Cristo, é possível identificar três linhas de conduta que Jesus liminarmente rejeitou: a procura da riqueza, a busca da notoriedade, o engodo do poder. Não se encontram nos procedimentos de Jesus, tal como nos são reportados pelos evangelhos, vestígios de cedência a nenhum destes três objectivos. O Filho do Homem era um pobre que não tinha onde reclinar a cabeça; quando fazia milagres, recomendava aos miraculados que não dissessem a ninguém; e claramente não quis que os que tinham autoridade se comportassem como os que na terra têm poder: o maior de entre eles devia considerar-se como o servo de todos.
Quanto à vida religiosa, a vigorosa denúncia que fez do proceder dos fariseus é a condenação veemente duma religião sem alma que se esgotava na prática de ritos, sem ter em conta e prescindindo mesmo do essencial da Lei. Leia-se o capítulo 23 do evangelho de S. Mateus e aí se verá como Cristo abominava a prática de ritos externos sem correspondência no interior: “Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt., 23, 23).
É por isso que me arrepia a mentalidade dominante segundo a qual o católico praticante é aquele que vai a Missa todos os domingos e se confessa uma vez por ano. Nesta exigência redutora identifico vestígios do ritualismo oco tão claramente abominado por Jesus. Não que despreze a Eucaristia ou a Penitência. Como Cristo a propósito das miudezas da Lei, também eu direi que é preciso “fazer isto e não omitir aquilo” (cf.
Mt., 23, 23). Mas um cristianismo reduzido à prática de ritos será sempre uma versão diminuída das exigências do ser cristão. É, em suma, um cristianismo fácil, que se arruma dedicando à religião uma hora por semana. As exigências da prática cristã pervadem a vida toda, o dia inteiro, todas as circunstâncias da vida que têm de ser avaliadas à luz das exigências evangélicas, e vividas em consequência. Católico praticante é o que assim procede: o que aprendeu as bem-aventuranças, o que cumpre as obras de misericórdia, o que recita o Pai nosso com verdade, o que interiorizou que o amor é a virtude que identifica os discípulos de Cristo: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo., 13, 35).
J. Tomaz Ferreira


domingo, 31 de janeiro de 2010

Que significa crer?

«A fé é o acto fundamental da existência cristã.
No acto de fé exprime-se a estrutura essencial do cristianismo, a resposta que esta dá à pergunta: como podemos atingir o nosso destino compreendendo a nossa humanidade? Há ainda outras respostas. Nem todas as religiões são uma «fé». Por exemplo, o Budismo na sua forma clássica não tende de modo algum para este acto de auto-transcendência, de encontro com o totalmente Outro, com o Deus que me fala ou me chama ao amor...»
Ratzinger, Joseph
A Europa de Bento
Na Crise de Culturas
Aletheia Editores

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Para uma Teologia da Viagem

Procuro lugares em Lisboa ou mesmo em Portugal onde se anuncie o Evangelho para pessoas com niveis médios e/ou altos de literacia, cultura, conhecimento. Sei de alguns, poucos, mas gostava de começar a alargar as minhas escolhas diárias ou dominicais.
Procuro também espaços inteligentes de cultura cristã.
Procuro ainda clubes, comunidades, grupos, congregações, (....) ordens que organizem Cursos de História do Cristianismo.
Ana Paula Lemos

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

P A R A U MA N O V A E P I F A N I A

Não serão muitos os cristãos que sabem localizar no calendário litúrgico a festa da Epifania do Senhor, e menos ainda os que conhecem o significado profundo desta festa. Em compensação, todos responderão prontamente quando interrogados sobre a festa dos Reis. Certamente porque, na celebração de 6 de Janeiro se lê na Missa a passagem do Evangelho de S. Mateus (cap. 2, vv. 1-12) em que se conta como do Oriente vieram uns Magos (o evangelho não fala de Reis) conduzidos por uma estrela que lhes foi indicando o caminho e os conduziu ao lugar onde estava Jesus, um menino que adoraram e a quem ofereceram presentes de oiro, incenso e mirra.
Toda a narrativa parece revestir-se duma grande carga simbólica que transcende o facto em si. E foi essa carga simbólica que levou a que a mesma fosse aproveitada para ilustrar aquilo que a Igreja entendia celebrar, a saber, a manifestação aos gentios do Salvador do Mundo, antecipando desde logo que Ele não fora enviado apenas às ovelhas perdidas da Casa de Israel, mas que o âmbito da sua missão terrena tinha a dimensão do universo. Com efeito, Epifania quer dizer justamente “manifestação”. E, se a adoração do Manino por mais três personagens, depois dos pastores pode considerar-se um fait divers sem importância de maior do ponto de vista da história da salvação, já o facto de eles serem gentios, alheios, portanto, ao povo de Israel, tem um significado profundo do ponto de vista da economia da mesma salvação.

O espectáculo do mundo de hoje, com o Povo de Deus a representar um “pequeno rebanho” quando comparado às multidões de descrentes que o rodeiam e que desconhecem o Salvador e a salvação que Ele veio trazer, apela a uma nova Epifania em que Jesus se manifeste àqueles que O desconhecem e que, desconhecendo-O, não podem obviamente segui-Lo. O Mundo precisa urgentemente de uma estrela que, à semelhança dos Magos, o conduza a Jesus.
“Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus” (Mt., 5, 16). Foram palavras de Jesus dirigidas aos seus discípulos no sermão da montanha. Se bem entendo, é ao proceder dos Seus discípulos que Jesus comete a responsabilidade de guiar até Ele os que ainda O não conhecem. E esta responsabilidade interpela-nos a todos: em que é que o nosso proceder de cristãos se distingue do proceder dos outros para que eles se sintam interpelados?
E aqui há que lembrar que o cristão não é nunca um elemento isolado. Faz parte duma comunidade, o Povo de Deus, que é a Igreja. E então apetece perguntar se a Igreja, tal como se apresenta aos olhos do mundo, é verdadeiramente a luz que ilumina os caminhos dos homens para os conduzir a Cristo. A pergunta é tanto mais pertinente quanto é certo que não raro aqueles que clamam pela reforma da Igreja (Ecclesia semper reformanda – Igreja sempre a precisar de reforma) são acusados de descurarem a tarefa primordial da evangelização. Quando, em meu entender, um dos pontos-chave da evangelização (eu diria o ponto-chave) reside numa Igreja em que os homens facilmente reconheçam a esposa de Cristo sem mancha e sem ruga. O que não acontecerá enquanto no seu agir predominar, por exemplo, o juridismo vigente em que a lei se sobrepõe ao homem, contradizendo a clara mensagem de Cristo que explicitamente proclamou o primado do homem sobre o Sábado (Cf. Mc., 2, 27). O que podemos ilustrar com um exemplo recente.
Como é sabido, os padres estão vinculados ao celibato. Não por força de um voto que não fizeram (o voto de castidade fazem-no os que ingressam numa ordem religiosa), mas porque uma lei da Igreja declarou a ordenação sacerdotal como impedimento para a celebração do Matrimónio. Um impedimento ao lado de outros impedimentos, como aquele que impede o casamento entre sujeitos ligados por um certo grau de parentesco. Desses impedimentos, a Igreja pode dispensar, e muitas vezes dispensa.
No pós-concílio, vários padres pediram dispensa desse impedimento e o Papa Paulo VI concedia essa dispensa, privando quem a recebia do exercício do ministério sacerdotal. Foi assim que muitos sacerdotes puderam, abandonando o ministério, contrair o sacramento do Matrimónio, e continuar a viver em paz e comunhão com a Igreja.
Assim que se sentou na cadeira de Pedro, o tão admirado João Paulo II recusou sistematicamente essa dispensa. Dos dramas de consciência que brotaram dessa sua atitude, terá dado contas a Deus. Perante o mundo ficou patente a clara contradição do seu gesto com o que Cristo ensinou. Para ele, o homem é que fora feito para o Sábado, e não o Sábado para o homem. O que não impediu o seu sucessor, Bento XVI, de o ter proclamado desde já “Venerável”, como primeiro passo para uma canonização que se adivinha acontecerá em breve.
Alguém vislumbra numa Igreja que assim procede o rasto da estrela que conduz a Cristo?
J. Tomaz Ferreira