sexta-feira, 23 de abril de 2010

O R A Ç Ã O


Mãe, aqui tens os teus filhos com sua imensa tropa
Para serem julgados não pela só miséria.
E Deus que ajunte a tudo um pouco desta terra
Que tanto os tem perdido e deles tão amada.

Mãe, aqui tens os teus filhos que tanto se perderam
Para serem julgados não só da baixa intriga.
E que Deus os soerga como crianças pródigas.
Que venham desabar nos seus braços erguidos…

Que não sejam julgados como puros espíritos
Que não sejam pesados pela balança justa
Que sejam como a vinha e o trigo maduro
Que nunca são medidos no flanco da colina…

Que Deus seja clemente e que assim lhes perdoe
O tanto terem querido à terra passageira
Porque dela eram feitos. Dessa lama e areia
Que jaz na sua origem, e tristemente os coroa.


Ch. Péguy

domingo, 18 de abril de 2010

OS ARTÍFICES DA CRIAÇÃO

Quando vou à Missa, recito convictamente as palavras do Credo. Eu creio, de facto, em “Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Mas nem por isso alinho com os chamados “criacionistas”, para quem tudo quanto existe no mundo foi modelado directamente por Deus. Tenho sempre presentes as judiciosas palavras do velho e sensato Tomás de Aquino que, do fundo da Idade Média, nos prevenia de que “Deus age através das causas segundas”. E isso me faz aceitar com toda a naturalidade a posição dos evolucionistas para quem o mundo, tal como o conhecemos, é o resultado de um processo lento e longo de transformações sucessivas, que conduziram ao aparecimento da vida e ao desdobrar da mesma na imensidão de espécies que hoje conhecemos. O facto de terem surgido através do referido processo de evolução em nada prejudica o facto de serem todas (de sermos todos) criaturas de Deus, fruto do Seu querer e obra das Suas mãos. As forças que as produziram e nos produziram mais não foram do que as causas segundas, através das quais Deus foi realizando a Sua obra.
Os cientistas que estudam o mundo nunca falam de Deus. Nem têm que falar. O seu campo de acção está limitado ao que é “observável”. E o que lhes é dado observar é a matéria, as suas acções e as interacções dos seus elementos. E estas não denunciam Deus. Os cientistas cingem-se ao “como” que observam e não têm que se preocupar com o “porquê” último. Em matéria de”porquê”, limitam-se a apontar as causas próximas. Como agora: há uma nuvem de poeira que impede a navegação aérea no norte da Europa porque um vulcão entrou em erupção na Islândia e os ventos arrastaram as cinzas expelidas na direcção em que sopravam.
Quando confrontados com os fenómenos evolutivos observáveis, são minuciosas a explicar o como, mas ao debruçarem-se sobre o “porquê”, esbarram no desconhecido e chamam em seu auxílio o acaso. E o acaso é, como sabemos, e por definição, o imprevisível, o imponderável. Einstein dizia que “o acaso é o pseudónimo que Deus usa quando não quer ser reconhecido”, Mas não vamos por aí. Atendo-se ao observável, verificaram os cientistas que, no ciclo imenso da evolução, a matéria escolhe sempre a direcção que vai num determinado sentido. Chamam a isto “teleonomia” - uma lei intrínseca à matéria que a orienta e faz avançar no sentido da consecução duma determinada finalidade. Um filósofo substituiria o termo teleonomia por teleologia, introduzindo no processo um elemento de inteligência, postulado pela própria noção de finalidade. Damos de barato que o cientista não tenha que o fazer. Não lhe cabe. E fiquemo-nos, como agentes da evolução, com um acaso teleonómico, desprezando o leve toque de contradição que a expressão acorda em nós.
Mas o mundo que hoje se depara aos nossos olhos já não é apenas o fruto do acaso das interacções que ditaram as proezas da evolução. Incorpora, e de que maneira, a acção do homem – por força da sua liberdade, tão imprevisível e imponderável, senão mais, do que a acção do acaso. Com uma agravante: a teleonomia, que os cientistas admitiram como guia da acção do acaso na evolução da matéria, não é transponível tout court para a acção do homem. É que, dotado duma inteligência auto-consciente, o homem tem a capacidade de estabelecer finalidades próprias e de orientar a sua acção para a consecução dessas finalidades. E não está dito que as definidas por miríades de mentes auto-conscientes sejam entre si coerentes, e muito menos que concordem no seu conjunto com a teleonomia que, segundo os cientistas, guiava o evoluir das forças da matéria… De facto, com o aparecimento do Homem, tudo se complica. Ao aleatório da evolução gerada pelo acaso, vem juntar-se o aleatório sublimado da vontade livre do Homem.
Assim, o termo final da evolução do Universo – e seria absurdo negar que esse termo final exista, no sentido pelo menos de “acabamento”, de “per-feição” no sentido etimológico do termo –antevê-se como o resultado de duas forças aleatórias – o acaso, e a vontade livre do Homem.

A Sagrada Escritura diz que, obra de Deus, a criação proclama a Sua glória e o Seu poder. É para defenderem essa glória e esse poder que os criacionistas querem que tudo quanto existe tenha sido directamente tocado pelo dedo de Deus. Confesso que a visão de Tomás de Aquino em que Deus age pelas causas segundas me parece potenciar muito mais a grandeza de Deus. Fazer o mundo por si próprio seria tarefa muito menos arriscada do que escolher per-fazê-lo através do aleatório do acaso e do super-aleatório da vontade livre dos homens.
J. Tomaz Ferreira