domingo, 26 de dezembro de 2010

POEMA DO MENINO JESUS

Num meio dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à Terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do Céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ela tinha fugido.
Com o segundo criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no Céu
E serve de modela às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas à cabeça
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
E depois, cansado,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de Tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos os dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinha
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair ao chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios e dos navios
Que deitam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer os olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Alberto Caeiro

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O SONO DE DEUS

Se há no mundo evidência inegável, é a existência do sofrimento. As causas do sofrimento humano são múltiplas, mas recondutíveis todas a duas grandes categorias: a Natureza, e o próprio Homem.
Todos os dias, ou quase, a comunicação social nos traz notícias de calamidades naturais com o seu cortejo de mortes e destruições: um tsunami na Ásia em que os mortos se contam por centenas de milhares e a destruição atinge níveis alucinantes; um terramoto no Haiti que praticamente não deixa pedra sobre pedra; vulcões que acordam e cujas torrentes de lava arrasam tudo à sua frente. Temos na memória as destruições do furacão Katrina, os estragos e as mortes das enxurradas na Madeira, e mais recentemente o flagelo do tornado que devastou Tomar e Ferreira do Zêzere. São apenas exemplos que poderíamos multiplicar.
Há depois as guerras, aquelas de que se fala e as que lavram esquecidas no continente africano, provocando a morte de inocentes e roubando aos meninos-soldados os sorrisos da infância, sem falar nos refugiados delas resultantes e que, por centenas de milhares foram deslocados das suas terras e vivem emprestada a vida que lhes chega da caridade internacional.
As epidemias e doenças, como a sida ou a malária de que a morte se serve para fazer a sua colheita sinistra, enchendo por milhões o seu celeiro de sombra nas terras onde a miséria não permite aos pobres aceder aos medicamentos que os poderiam salvar. E é a pobreza e a fome de tantos, vítimas da ganância de uns poucos favorecidos por uma ordem económica injusta que, do mesmo passo que permite a acumulação da riqueza nas mãos de uns tantos, priva outros do necessário para viver. Perante este espectáculo, parece que o Deus Providência adormeceu e tarda em acordar. E ocorre-nos a imprecação do Salmista: “Acorda, Senhor! Porque dormes? Acorda e não nos rejeites para sempre!” (Ps. 44, 24)
Será mesmo que Deus dorme? Mas como compaginar o sono de Deus com a imagem que d’Ele nos deixou Jesus quando disse que Deus toma conta de nós, e que até os cabelos da nossa cabeça Ele tem contados (Cf. Mt., 10, 30 et Mt., 5, 25 segs)?
Não há que negar: a existência do mal no mundo coloca quem tem fé perante o paradoxo de um Deus que, sendo bom, cria por amor e ama os seus filhos, do mesmo passo que permite sejam vítimas de tanto sofrimento. Muitos fogem do paradoxo caindo no absurdo da negação de Deus. Por mim, ao absurdo prefiro o mistério: a existência do mal no mundo é efectivamente um mistério que desafia o nosso entendimento a encontrar, se não a sua compreensão, uma certa inteligência dele que, sem o resolver, atenue pelo menos o seu aspecto paradoxal.
Em primeiro lugar, resulta da Bíblia que Deus não quis criar um mundo perfeito e acabado. E a teoria da evolução vio efectivamente confirmar esta perspectiva. Segundo a Bíblia, acabado de criar, o Homem recebeu de Deus a missão de dominar a Terra (cf. Gen., 1, 28), isto é, de continuar a obra de Deus e de a levar à perfeição. Os Salmos são muito claros: “O Céu, Deus reservou-o para Si; a Terra deu-a aos filhos dos homens”
(Ps. 118, 16). E, percorrendo a história, podemos constatar como, do trabalho dos homens, tem resultado uma notável diminuição do sofrimento humano. Para chegar a esta conclusão, basta olhar para os progressos da medicina e ver como as epidemias recuaram e hoje se curam doenças outrora letais. Mesmo nas catástrofes naturais, para além de haver meios de resposta outrora desconhecidos que permitem atenuar-lhes os efeitos, há já em alguns casos meios de previsão que permitem aos homens furtar-se à devastação.
Vivemos ainda numa sociedade injusta. Mesmo assim, temos de reconhecer os progressos feitos na consciência generalizada da dignidade humana e dos direitos que dela derivam.
É claro que a caminhada dos homens não é uniforme e o pecado continua presente no agir humano. É dele que nascem a calamidade das guerras e a loucura do terrorismo; é dele que nasce a exploração do homem pelo homem que gera a fome e a miséria. Mas não culpemos a Deus pelos desvarios dos homens que Deus quis livres: é a liberdade que faz a grandeza do homem; é da liberdade que nascem muitas das chagas que afligem a Humanidade.
Devemos desesperar? De modo nenhum. O caminho percorrido é de molde a alimentar a nossa esperança. E sabemos que, no fim, acontecerá a consumação da História – “os novos céus e a nova terra em que habita a justiça, segundo a Sua promessa” (2Petr., 3, 13).
É este o grande advento que somos chamados a viver. O sono de Deus é a vigília dos homens.
J. Tomaz Ferreira