terça-feira, 15 de junho de 2010

DA SS.ma T R I N D A D E

O depósito da Fé que os crentes professam no seio da Igreja Católica está cheio de mistérios que a inteligência humana não consegue compreender. Por isso se diz que o acto de fé não é um acto racional, mas apenas razoável. Uma das tarefas que ocupou a Igreja, nomeadamente nos primeiros séculos da sua existência foi o esforço de formular em termos humanos os dados desses mistérios de modo a que eles pudessem ser, não compreendidos, mas expressos na clara fidelidade ao dado revelado: o que se pretendia era a formulação do mistério e não a sua compreensão. Esta tem a Igreja consciência de que não pode ser conseguida: compreender é delimitar, verbo que não pode ser conjugado quando se toca no Infinito.
Um dos mistérios mais sublimes é o que se designa por mistério da SS.ma Trindade: é básica e fundamental na fé cristã a crença em um Deus único que, sendo uno, subsiste em três pessoas iguais e distintas. Como diz a liturgia, os cristãos adoram a Deus “não na unidade de uma só pessoa, mas na trindade de uma única substância”. Pai, Filho e Espírito Santo são os nomes por que se designa a Trindade em que Deus subsiste: chma-se-lhes as três pessoas divinas. Cada uma delas é Deus, sem que por isso haja três deuses. As três pessoas são iguais, subsistindo todas na mesma substância divina ou subsistindo em cada uma delas a mesma substância divina. O que não as impede de serem distintas, sendo que o Pai não se confunde com o Filho nem com o Espírito Santo, como o Filho não é o Pai nem o Espírito Santo, e este não é nem o Pai nem o Filho.
Subsistindo em três pessoas, Deus não é o resultado final da junção das três como se cada uma delas fosse uma parte de Deus e Deus a soma das partes. Cada uma delas é Deus por inteiro; mas Deus inteiro não pode prescindir de qualquer delas. Iguais na mesma substância divina, não há nelas “mais” ou “menos”; não há subordinação nem dependência: há igualdade absoluta que não destrói a distinção que faz com que cada uma não seja a outra.
O enunciado que aí fica representa, a ser (como cremos) verdadeiro, um desafio imenso à inteligência, que pode aceitar o mistério pela fé, mas não pode compreendê-lo pela razão. De resto, a aceitação do mistério de Deus, mais do que ao seu entendimento apela à sua adoração. Se temos fé suficiente para aceitar o mistério, então busquemos na humildade da adoração a atitude certa para lidar com ele, na esperança de que a visão de Deus face a face que nos está prometida para a vida eterna nos permita a inteligência possível do mistério que a nossa finitude por ora nos recusa.

J. Tomaz Ferreira

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A P A L A V R A C E R T A

A descoberta em vários países de casos de pedofilia envolvendo membros do clero e, ao que se diz, até um que outro bispo, deu azo a que os meios de comunicação exercessem com veemência e indignação o seu dever de denúncia, apontando à Igreja Católica o dedo acusador – e com razão. Para além dos casos já de si vergonhosos, a Igreja pôde ser acusada de, encobrindo-os, ter pactuado com o crime que devia ter sido a primeira a reconhecer, assumindo coram populo as consequências que se impunham. Não o fez, penso que em nome da velha preocupação de evitar o escândalo. Erradamente. S. Gregósio Magno, um Papa santo da Alta Idade Média, enunciara há muitos séculos a norma de conduta a seguir pela Igreja em casos que tais: “Se da verdade nascer o escândalo, suporte-se o escândalo, mas não se abandone a verdade”.
Felizmente, as coisas estão hoje clarificadas, e, perante os escândalos de pedofilia do clero, a posição da Igreja não oferece dúvidas: antes de mais, o reconhecimento dos factos; depois, a averiguação da sua veracidade, como se impõe; finalmente, o procedimento exigido pela justiça no interior da mesma Igreja e a colaboração com as autoridades no plano da justiça extra-eclesiástica. Penso que, para que aqui se chegasse, alguma coisa deve ter contribuído o alarido mediático que se fez à volta do problema.
Não faltou quem atribuísse tal alarido a uma conspiração de forças estranhas inimigas da Igreja que daqui colhiam a oportunidade para a atacar. Não tenho dúvidas quanto à existência de forças que tais, e acredito que, segundo a palavra de Cristo, a Igreja há-de sempre confrontar-se com a sanha das perseguições. Mas não foram essas forças que empurraram os membros do clero para a prática da pedofilia. E é nela que está a raiz do problema. Por isso, oportunas e decisivas foram as palavras de Bento XVI quando arredou a ideia de campanha adversa e apontou como cerne da questão o pecado da Igreja que por ele deve fazer penitência e para ele deve buscar justiça.

É hora de lembrar como a história da Igreja ensina que na base de todas as crises que ao longo dos séculos têm varrido o Povo de Deus se encontra sempre o pecado – o pecado que é uma constante na vida desse Povo desde o início. Uma visão idealizada da vida dos primeiros cristãos levou-nos por vezes a considerá-los imaculados e em tudo exemplares. Não era assim, não foi assim: é o que facilmente se conclui da leitura dos Actos dos Apóstolos que certamente não fixaram para nós todos os casos de pecado, mas só os que podemos considerar exemplares. E lá encontramos a hipocrisia de Ananias e Safira (Act., 5, 1-5) a par da perversão de Simão, o Mago, que com dinheiro pretendia adquirir dons sobrenaturais que são dádivas de Deus e não bens transaccionáveis (Act.,8, 18-24). É o pecado de simonia que tantas vezes se havia de repetir ao longo da vida da Igreja e que, ou muito me engano, ou está longe de se encontrar erradicado da Igreja de Deus.
As Epístolas de S. Paulo dão conta de muitas situações de pecado nas comunidades por ele fundadas: em Corinto, casos de incesto (1Cor., 5, 1-2) e de devassidão (1Cor., 5, 9-13); em Tessalónica, “vida desordenada e ociosa” (2Tess., 3, 6 segs). S. Paulo não teoriza quando, escrevendo a Timóteo, o alerta para a existência de “invejas, rixas, injúrias, suspeitas maldosas, altercações” (1Tim. 6, 4).
Os primeiros concílios (Éfeso, Niceia, Constantinopla – para não falar do de Jerusalém) fizeram-se para resolver crises graves que eclodiram na Igreja como fruto do pecado daqueles que, abandonando a sã doutrina, ameaçavam perverter a fé da Igreja, tal como ela a bebera no depósito da Revelação.
E é sempre o pecado, nas suas várias formas, que encontramos a determinar as grandes crises que abalaram a Igreja ao longo dos séculos. Em comparação com essas crises, bem pode dizer-se que a “crise” actual, gerada pela pedofilia, não passa de um fait divers menor na história da Igreja. Pensemos no cisma do Oriente que partiu em duas a Cristandade e que, mau grado os esforços recentes, está longe de se encontrar reparado. Na sua raiz está, de um lado a ambição de Constantinopla e a sua emulação com Roma em matéria de primazia; do outro, a resposta, certa na essência mas eivada de arrogância no modo com que Roma defendeu o Primado da Sé de Pedro.
Foi ainda o pecado em que viviam e persistiam os Papas e a sua Cúria nos tempos do Renascimento que determinou a divisão da Igreja do Ocidente com o afirmar-se das cisões calvinista, luterana e anglicana (simplificando, claro está), que definitivamente pulverizaram o bem precioso da unidade da Igreja, um bem que foi objecto duma súplica explícita de Jesus ao Pai: “Que todos sejam um, como Tu, Pai, és um em mim e eu em Ti, para que também eles sejam um em nós”. (Jo., 17, 21).
De facto, a história da Igreja é também a história dos pecados dos homens que a constituem, e da força santificadora do Espírito Santo que a anima. Do pecado nascem sempre, e para toda a comunidade, consequências nefastas. Mais forte porém do que o pecado, do que todos os pecados, é a força redentora do sacrifício de Cristo na cruz. É essa força que há-de vencer sempre os malefícios do pecado sobre a Igreja. Segundo a promessa do Senhor, “as portas do Inferno não levarão a melhor”.

J. Tomaz Ferreira