quinta-feira, 31 de julho de 2008

DEUS E NÓS

Só Deus pode dar a Fé,
mas tu podes dar o teu testemunho.

Só Deus pode dar a Esperança,
mas tu podes dar confiança aos outros.

Só Deus pode dar o Amor,
mas tu podes ensinar os outros a amar.

Só Deus pode dar a Força,
mas tu podes dar coragem a quem está triste.

Só Deus é o caminho,
mas tu podes indicá-lo aos outros.

Só Deus é a luz,
mas tu podes fazê-la brilhar nos olhos dos outros.

Só Deus é a vida,
mas tu podes oferecer aos outros a vontade de viver.

Só Deus pode fazer o que parece impossível,
mas tu podes sempre fazer o possível.

Só Deus é suficiente em Si mesmo,
mas… prefere contar contigo.


Caderno de oração Verbum Dei, Verão 2008

segunda-feira, 28 de julho de 2008

ANDAR COM FÉ



Andar com fé
é saber que cada dia é um recomeço,
é ter a certeza de que os milagres acontecem
e que os sonhos se podem realizar.

Andar com fé
é saber que temos asas invisíveis,
é fazer pedidos a estrelas cadentes
e abrir as mãos para o céu.

Andar com fé
é olhar sem temor as portas do desconhecido,
ter a inocência dos olhos da criança,
a lealdade do cão,
a beleza da mão estendida para dar e receber.

Andar com fé
é usar a força e a coragem que habitam dentro de nós
quando tudo parece acabado.

Andar com fé
é saber que temos tudo a nosso favor,
é compartilhar as bênçãos multiplicadas,
é saber que seremos sempre surpreendidos
com presentes do Universo;
é a certeza de que o melhor sempre acontece
e que tudo aquilo que almejamos
está totalmente ao nosso alcance.
Basta só Andar com Fé.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

DIÁLOGO INTERELIGIOSO

“A religião católica contém explicitamente verdades que outras religiões contêm implicitamente. Mas reciprocamente, outras religiões contêm explicitamente verdades que só são implícitas no cristianismo. O cristão melhor instruído pode ainda aprender muito sobre as coisas divinas noutras tradições religiosas, ainda que a luz interior possa também fazer que ele perceba tudo através da sua. Todavia, se estas outras religiões desaparecessem da face da terra, seria uma perda irreparável. Os missionários já fizeram desaparecer que chegue.
S. João da Cruz compara a fé aos reflexos da prata, sendo a verdade o ouro. As diversas tradições religiosas autênticas são reflexos diferentes da mesma verdade e talvez igualmente preciosos. Mas não damos conta disso porque cada um vive uma só destas tradições, e apercebe-se das outras desde fora. Ora, como os católicos repetem sem parar, e com razão, aos não crentes, uma religião só se pode conhecer a partir de dentro.
É como se dois homens, colocados em dois quartos que comunicam, vissem o sol pela janela e o muro do vizinho iluminado pelos raios, cada um crendo que é o único a ver o sol e que o vizinho só vê um reflexo.
A Igreja reconhece que a diversidade das vocações é preciosa. É necessário estender este pensamento às vocações situadas fora da Igreja. Porque elas existem.”
Simone Weil, Carta a um Homem Religioso, pag. 36

Profº Hans Kung acredita em Deus?

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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Estás a ouvir?

BOM DIA*

Quando te levantaste, pela manhã, Eu já tinha preparado o sol para aquecer o teu dia, e o alimento para a tua nutrição. Sim, Eu preparei tudo isso, enquanto velava o teu sono, a tua família, a tua casa.
Esperei pelo “Bom dia”, benzendo-te e dirigindo-Me uma oração, mas esqueceste-te de Mim! Parecias ter tanta pressa!
O sol apareceu, as flores deram o seu perfume, a brisa da manhã acompanhou-te e tu nem pensaste que fui Eu que preparei tudo para ti!
Os teus familiares sorriam, os teus colegas cumprimentaram-te, trabalhaste, estudaste, viajaste, realizaste negócios, alcançaste vitórias, mas… não percebeste que Eu estava cooperando contigo, e mais teria feito se Me tivesses pedido.
Eu sei! Correste tanto!...
Leste bastante, ouviste e viste muita coisa, mas não tiveste tempo de ler e ouvir a Minha palavra.
Quis falar contigo, mas não paraste para ouvir. Quis aconselhar-te, mas nem pensaste nessa possibilidade… Se Me ouvisses, se rezasses, tudo seria melhor na tua vida. Mais uma vez, esqueceste-te de Mim…Esqueceste que Eu desejo a tua participação no Meu Reino, com a tua vida, o teu tempo, os teus talentos!
Findou o teu dia e voltaste para casa. Mandei a lua e as estrelas tornarem a noite mais bonita, para te lembrar o Amor que tenho por ti!
Certamente agora vais dizer-Me “obrigado e boa noite”!
Estás a ouvir? Que pena!... Já adormeceste! E passaste o dia sem te lembrares de Mim! Boa noite! Dorme bem! Eu fico a velar por ti!
E quando, enfim, quiseres saber quem Eu sou, pergunta ao riacho que murmura, ao pássaro que canta, à flor que desabrocha, à estrela que cintila, ao jovem que espera e ao ancião que recorda.
Chamo-Me AMOR, o remédio para todos os males. Eu sou JESUS!

*Texto de autor anónimo, afixado à porta duma igreja de província

J.Tomáz Ferreira

terça-feira, 22 de julho de 2008

Stabat Mater - Vivaldi

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Telefonai! Exigi!

AS MISSAS TELEVISIVAS

Em Portugal, quando se fala em « missa na televisão» as pessoas
referem-se à missa que a Tvi, transmite, em directo, aos domingos,
às 11 horas, e à qual se segue um comentário do Sr. Cónego António
Rego. A missa de ontem foi transmitida de Casegas, freguesia do
concelho da Covilhã, e presidida pelo Bispo da Guarda, D. Manuel
Felício, que quis assim realçar as comemorações do 75º aniversário
da obra fundada pelo Venerável Mons.Alves Brás.
Havia muita gente em Casegas, e houve certamente muita gente a
partilhar, bem longe, essa celebração. Seria de esperar que o Sr.Có-
nego Rego reservasse a sua reflexão a esta obra que inicialmente
teve o nome de Obra de Santa Zita, e hoje tem a designação de
Instituto Secular das Cooperadoras das Famílias, e que
tem casas não só em Portugal mas até em vários países da Europa,
a começar pela Espanha, França, Itália, etc. Pois o Sr. Cónego enve-
redou por outro caminho… Eu nasci numa aldeia que fica a uns
30 kms de Casegas, e tenho uma grande dificuldade em admitir que
os jovens da minha terra conheçam os nomes dos futebolistas de
países estrangeiros e ignorem que perto deles nasceu um sacerdote
que fundou uma obra para defesa das criadas que, nesse tempo, ti-
nham uma condição de vida que se podia chamar « escravatura».
Abundam na Internet programas e imagens execrandas, mas também
podemos encontrar por lá, programas admiráveis. A outras conside-
rações preferimos indicar aqui os 4 canais principais católicos, e de
captação fácil pela parabólica:
Sat 2000- Tv do Vaticano – Hotbird 1- 11800 freq.
Telepace - “ “ 1- 2800 “
Telepace transmite muitas vezes a« Hora Santa » directamente de Fáti-
ma, como transmite sempre as cerimónias dos dias 12 e 13 de cada mês
KTO – emissora católica francesa mudou de satélite, emite no Astra mas
ainda não consegui descobrir a frequência.
EWTN – É uma emissora católica americana que transmite, a partir da
Alemanha, em inglês e espanhol; por vezes, a captação em
espanhol é difícil, depende dos receptores.
Por outras palavras, podemos assistir a várias missas por dia, ou muitos
outros temas de reflexão, tradições, etc.
E para terminar, uma pequena referência, que é um exemplo:
A ITÁLIA TEM 12000 « sites» católicos, o que dá uma média de
1 site por cada 5.000 habitantes; então, porque é que havemos de ter
medo? E porque é que havemos de ter medo de exigirmos da Meo e da
TVCabo que coloquem o Canal da RAIUNO em posição acessível,
pois é não só um dos canais mais importantes da Europa, mas também
aquele que mais interessa aos católicos. Telefonai! Exigi! Somos clientes
e não vítimas, ou não?

©Fernando Moura

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Ser Cristão

“Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pelo território nem pela língua nem pelo modo de viver […] Moram em cidades gregas ou bárbaras, conforme a sorte que coube a cada um, e adaptam-se aos usos do país no que diz respeito ao vestuário, à alimentação e ao restante estilo de vida, dão testemunho de uma forma de vida social maravilhosa que – na opinião de todos – tem algo de incrível. Moram na sua própria pátria mas como estrangeiros; participam em todos os deveres como cidadãos, e suportam tudo como estrangeiros. Cada terra estrangeira é pátria para eles e cada pátria é terra estrangeira. Casam como todos os outros e têm filhos, mas não expõem os recém-nascidos. Têm mesa em comum, mas leito não. Vivem na carne, mas não segundo a carne. Moram na terra, mas são cidadãos do céu. Obedecem às leis estabelecidas, mas, com o seu teor de vida, estão acima das leis. Amam todos e são perseguidos por todos. […] Em síntese, os cristãos são no mundo aquilo que a alma é no corpo. […] A alma ama a carne, que a odeia, e os membros: também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está encerrada no corpo, mas ela própria sustenta o corpo: também os cristãos são mantidos no mundo como numa prisão, mas eles sustentam o mundo. […] Tão elevado é o posto que Deus lhes atribuiu que não podem abandoná-lo.”

Epístola a Diogneto (texto de autor desconhecido do sec. II)

A morte, uma realidade incómoda...

A CREMAÇÃO

Vai em crescendo o número dos que escolhem a cremação em detrimento da sepultura para acomodar os seus restos mortais ou os dos seus familiares. Segundo li, são já 47% os funerais que terminam no forno crematório onde o cadáver é reduzido a cinzas, em vez de se depositar o corpo em cova aberta na terra. Felizmente, isso não escandaliza ninguém e, nos grandes aglomerados populacionais, veio dar uma grande ajuda às autarquias, a braços com um, em muitos casos aflitivo, problema de falta de espaço para acomodar cemitérios.
Tempos houve em que a cremação do cadáver não era bem vista pela Igreja que chegou mesmo (se não estou em erro) a proibir os seus fiéis de a ela recorrerem. É compreensível. A sepultura cristã tem uma tradição secular e vem dos primórdios do cristianismo: as hoje tão veneradas catacumbas de Roma mais não eram do que cemitérios que os cristão tinham adquirido para si. Cemitério quer dizer dormitório: os fiéis adormeciam no Senhor e eram restituídos inteiros à Terra donde tinham sido tirados, para, na ressurreição, acordarem para a vida eterna, aconchegados no seio de Deus.
Como é evidente, não é por ser cremado que o corpo fica impossibilitado de ressuscitar, e a Igreja não coloca hoje qualquer obstáculo à cremação. Mas o recurso a ela merece alguma reflexão que pode ajudar-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos e a sua mentalidade dominante. E esta convive mal com a morte.
Na antiga cultura rural, pode dizer-se que a morte era olhada como a sequência natural da vida e o seu prolongamento. Nas nossas aldeias, o cemitério fazia parte do povoado. A morte apenas obrigava o defunto a mudar de casa. Por isso, participar no funeral era acompanhar o falecido à sua última morada. Os que lhe queriam bem iam ali visitá-lo e lembrá-lo.
A cremação, eliminando a presença, ainda que oculta, dos restos mortais, afigura-se com uma tentativa de apagar a memória de quem já foi, e faz perder aquela espécie de convivência entre vivos e mortos que perdurava mercê da presença do cadáver na sepultura. A saudade, que certamente continua a existir, deixou de ter um referente físico em que se centrar. E a ausência deste não pode deixar de ser uma espécie de convite ao esquecimento. Com a cremação, os mortos deixam de ter lugar na cidade dos vivos.
É um sinal dos tempos, destes tempos em que a morte é uma realidade incómoda. Por isso, há que esquecê-la e apagar os seus vestígios. É que a alternativa seria encará-la de frente – o que implicaria inevitavelmente encarar também as interrogações fundamentais sobre o sentido da vida. E a isso o homem actual mostra-se decididamente avesso.
É bem? É mal? Julgue cada um por si. Só faço notar que não é por ignorá-los que os problemas deixam de existir.

©J. Tomaz Ferreira

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Vamos pensar novas formas de organização...

O PREÇO DAS MISSAS

Não é que eu não soubesse. Desde que me conheço, sempre ouvi que quando se manda celebrar uma Missa, é preciso pagá-la ao padre que a celebra. E o povo simples “pagava” a Missa, traduzindo no seu linguajar rude uma relação de fornecedor-consumidor, uma operação de compra e venda.
Os mais iustrados sabiam que não se pagava o “preço” da Missa e, com maior propriedade linguística, falavam do “estipêndio”. A palavra foi colhida no direito romano, onde se distinguiam dois impostos: o tributum nas províncias sujeitas ao imperador, e o stipendium nas províncias sujeitas ao Senado.
Como é sabido, a Igreja cristianizou o Império – mas o Império romanizou a Igreja. E a Igreja importou do Império coisas boas e más. Uma delas foi o estipêndio que em rigor podemos definir como um imposto cobrado aos fiéis por ocasião da prestação de um serviço. Em linguagem actual, não andaremos longe da verdade se definirmos o estipêndio das Missas como uma taxa que a Igreja cobra pela prestação de um serviço.
Foi essa taxa que numas quantas dioceses do norte do pais sofreu um aumento de 33%, passando de 7.50 para 10 euros.
O que me chocou foi a forma brutal como o anúncio me chegou pela comunicação social: “Preço das Missa aumenta 33%”. Falar em preço duma coisa sagrada sabe a simonia que é exactamente isso: a venda de bens espirituais e que S. Pedro condenou veementemente na tentativa feita por Simão de conseguir por dinheiro o poder de transmitir o Espírito Santo (Cf. Act., 8, 18-24). É que a regra fora estabelecida, e com tada a clareza, pelo próprio Cristo: “Dai de graça o que gratuitamente recebestes” (Mt., 10, 8).
É claro que, reduzido o preço das Missas à categoria de estipêndio, não se pode falar propriamente em simonia. E os juristas sempre podem argumentar que, sendo a Igreja uma sociedade perfeita, lhe cabe indiscutivelmente o poder da cobrar taxas e impostos. Não vamos discutir agora a pertinência do argumento e damos de barato que, vivendo no mundo, neste mundo, a Igreja não pode prescindir dos bens materiais. Mas assim? Dando azo a ser apresentada como um qualquer fornecedor de serviços que cobra a taxa à tabela fixada? Não se poderia deixar ao arbítrio dos utentes o que querem dar como contributo para as necessidades do clero (que variam muito de caso para caso) e as precisões do culto?
Talvez que a raiz deste fenómeno de deva procurar na forma como a Igreja está organizada. Mas então, porque não procurar formas de organização novas que nos dêem não uma outra Igreja (é esta que é a nossa Mãe), mas uma Igreja que seja outra.
J. Tomaz Ferreira

domingo, 6 de julho de 2008

Fé e Razão...

A FÉ E A RAZÃO SEGUNDO GALILEU

Ao tentar evitar o conflito com a Igreja sobre a relação entre a nova astronomia copernicana e a Escritura aristotelicamente interpretada, Galileu propôs duas teses.
A primeira tese defende que a Escritura, se for bem interpretada, concorda necessariamente com a astronomia, porque – como escreveu na carta a D. Benedetto Castelli a 21 de Dezembro de 1613 – “procedendo igualmente do Verbo Divino a Sagrada Escritura e a natureza, aquela como ditado do Espírito Santo e esta como fidelíssima cumpridora da vontade de Deus; e sendo, além do mais, assente dizer nas Escrituras, para se ajustarem ao entendimento universal, muitas coisas diferentes da verdade absoluta, quanto ao aspecto e ao sigificado das palavras; […] parece que se houver um efeito natural que a sensata experiência nos coloca diante dos olhos, ou que as necessárias demonstrações comprovem, ele não deverá de modo algum ser posto em dúvida pelas passagens da Escritura que tenham nas palavras aparência diferente, já que nem todos os ditos da Escritura estão ligados a obrigações tão rígidas como qualquer efeito da natureza”.
A segunda tese diz que a Escritura e a astronomia tratam de coisas diferentes, a primeira da salvação dos homens, a segunda de questões factuais: “E se o próprio Espírito Santo propositadamente – escreveu Galileu a Madame Cristina Lorena em 1615 – não permitiu ensinar-nos semelhantes proposições [de astronomia], por nada terem a ver com a sua intenção, isto é, com a nossa salvação, como é que agora se pode afirmar que o ter delas esta parte, e não aquela, é tão necessário que uma é de fide e a outra errónea? […] Eu aqui diria aquilo que ouvi dizer a uma eminente personagem do clero, ou seja, que a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se vai para o céu, e não como vai o céu”.
Podemos chamar à primeira a tese da convergência ou da unidade entre ciência e Escritura, e à segunda a tese da separação ou da diversidade entre a pesquisa científica e a esfera da salvação religiosa.
Marcello Pera, in A Europa de Bento, ed. Aletheia, pag. 7.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Por ti clamamos Senhor,

Antologia

CLAMEI PELO SENHOR

Como caminhantes perdidos num deserto árido e escaldante,
Por ti clamamos, Senhor.
Como náufragos em ilha abandonada,
Por ti clamamos, Senhor.
Como pai a quem privaram do pão ganho e pedido à fome dos filhos,
Por ti clamamos, Senhor.
Como presos da presa do injusto rico, do fundo da cela húmida
E recôndita onde o seu ódio nos lançou,
Por ti clamamos, Senhor.
Como o inocente ao suplício conduzido,
Por ti clamamos, Senhor.
Como escravos fustigados da fúria do seu dono,
Por ti clamamos, Senhor.
Como todas as nações da terra, antes de soar a hora da libertação,
Por ti clamamos, Senhor.
Como Cristo na cruz quando vos disse:
Pai, Pai, porque me abandonaste?
Por ti clamamos, Senhor.

Lamenais, Paroles d’un croyant.

terça-feira, 1 de julho de 2008

A propósito de uma viagem a Roma organizada pela Europa Viva...

A Bíblia na cultura europeia



Armindo dos Santos Vaz


A partir de um artigo com o título “A Bíblia, o livro que mudou o mundo ocidental”, publicado em 10 livros que mudaram o mundo (organização de A.I. SANTOS – A.P. JARDIM, da Câmara de Oeiras) (Quasi; Vila Nova de Famalicão 2005) 61-105, saiu agora este trabalho, substancialmente aumentado, que, prolongado na descrição da influência da Bíblia na literatura europeia, está em vias de publicação.



Introdução

Escrita numa região que fazia a junção do mundo do Oriente com o do Ocidente, a Bíblia estendeu a sua influência de forma determinante para onde se estendeu o cristianismo: o Ocidente.
Para se difundir e atravessar os séculos, ela precisou de pessoal e de material. Precisou e precisa sobretudo de um transporte pessoal: os milhões de leitores que nela beberam, a família, o grupo de reflexão, o convento, a abadia e o mosteiro, a nação, a Igreja, a catequese, a pregação… Mas também precisou e continua a precisar de um meio de transporte material que lhe dê boleia para o futuro: usou manuscritos, o rolo, o papiro, o pergaminho, o códice, o palimpsesto, os fólios monumentais e a miniatura em formato de cabeça de alfinete, os leccionários, o papel, o livro impresso, o pano e a madeira, a pedra e as imagens, o braile e a linguagem de sinais para surdos, e agora o suporte informático, electrónico, em discos compactos e outros.
Mas o transporte da Bíblia do passado para o presente era lento. O século XII ainda desconhecia a Bíblia num único grande volume. Razões técnicas e práticas impediam que isso acontecesse. Os manuscritos eram volumosos e pesados. Uma Bíblia completa teria sido intransportável e pouco manejável. As letras eram demasiado grandes para que o texto pudesse caber num só volume. No séc. XIII o tamanho das letras manuscritas foi reduzido a dimensões menores. Este factor e o uso intenso das abreviaturas contribuíram para a compressão da caligrafia. Mesmo assim, uma Bíblia do séc. XIII raramente pesava menos de cinco quilos. Seriam precisas outras técnicas para tornar uma Bíblia verdadeiramente «portátil»
[1]. Uma dessas técnicas foi a imprensa.
Precisamente no uso da imprensa e de materiais para alargamento da sua influência, a Bíblia guarda a honra de ter marcado uma viragem importante da civilização: é a mais antiga, a mais célebre e a primeira obra de tomo a ser impressa pelo processo de tipos móveis. Foi a Biblia latina de Gutenberg. Impressa em Mogúncia, Mainz, provavelmente entre o ano 1454/1455 e o 24 de Agosto de 1456, é chamada “Bíblia Mazarina” ou “Bíblia das 42 linhas” por coluna, a duas colunas por página, com caracteres góticos, admiravelmente gravados numa impressão perfeitíssima. Foi feita para se parecer a um manuscrito gótico alemão. Foram impressas umas 180 cópias originais, todas iluminadas à mão, das quais sobrevivem uns 41 exemplares, 12 em pergaminho
[2]. A nossa Biblioteca Nacional em Lisboa possui um exemplar em papel: de facto, algumas cópias foram impressas em pergaminho e outras em papel [3].
Portanto, até ao séc. XV o texto bíblico foi manuscrito, graças a copistas. Da necessidade de publicação e preservação dos conteúdos depressa os respectivos artefactos se tornaram também objecto de expressão artística. Do desenho da caligrafia às iluminuras que acompanhavam os textos, passando pela qualidade dos materiais usados, a Bíblia figurava então entre as obras artísticas de maior vulto. A invenção da imprensa não só veio diminuir o custo de produção como permitiu uma disseminação sem precedentes dos textos bíblicos. Se a imprensa permitiu uma produção e divulgação que tornou a Bíblia no livro mais vendido em todo o mundo, este processo despiu-a da arte que lhe conferia a cópia manuscrita
[4].
A Bíblia ainda detém mais dois importantes records da história universal do livro. Um dos exemplares desta primeira impressão da Bíblia foi vendido pelo valor mais alto alguma vez atingido por um livro: 250.000 contos em 1978. Além disso, é de longe o livro mais traduzido e divulgado, já desde a antiguidade anterior ao Novo Testamento
[5]. O processo de tradução e retradução tem sido contínuo ao longo de mais de dois milénios. Só as Sociedades Bíblicas distribuem anualmente em todo o mundo cerca de 500 milhões de Bíblias [6]. A Bíblia, na totalidade ou em partes substanciais (pelo menos, um livro completo), está traduzida para mais de 2426 línguas diferentes [7]. Em português há mais de vinte versões, oriundas de Portugal e do Brasil. É o livro mais reproduzido, mais lido e referenciado de todos os tempos. Também se pode dizer que é o acto de linguagem mais largamente publicado e difundido à face da Terra.
Esses dados históricos determinaram ainda mais a sua influência e a sua difusão.
Particularmente o Novo Testamento teve na cultura do Ocidente uma influência muito superior à de qualquer outro livro da antiguidade. Um testemunho dessa influência pode ver-se no facto de o seu texto no original grego ter chegado até nós numa quantidade de cópias incomparavelmente maior do que a de qualquer outra obra do mundo clássico. Ao todo, conhecem-se e conservam-se 5.488 antigos manuscritos gregos com partes, com alguns livros ou com a totalidade do Novo Testamento: é de longe a base textual mais alargada para qualquer corpus de escrita antiga na língua original
[8]. Em termos de conservação, o Novo Testamento supera sem comparação muitos outros livros clássicos antigos, que chegaram até nós fragmentários e em raríssimos códices, normalmente posteriores, em muitos séculos, ao texto original. Exceptuando o caso de autores muito populares como Homero e Virgílio, é raro que obras da antiguidade contem mais de meia dúzia de manuscritos anteriores ao fim da Idade Média. Salvo fragmentos, não há manuscritos de clássicos gregos anteriores ao séc. IX e muito poucos anteriores ao séc. XII [9]. Aos 5.488 manuscritos do Novo Testamento na língua original é preciso acrescentar uns 10.000 manuscritos das diferentes versões antigas, bem como milhares de citações contidas nos escritos dos Padres da Igreja [10]. Esta boa conservação do texto explica a sua influência na sociedade e é resultado dela.
A presença decisiva da Bíblia nos países do Ocidente sente-se em múltiplos aspectos da vida, da cultura, da política, das ciências, das artes, da literatura e da linguagem, da mentalidade, da religião, das leis, da moral e da história
[11]. Valores fundamentais do direito ocidental são de origem bíblica. A Bíblia dá, abundantemente, forma à nossa identidade histórica, cultural, religiosa e social [12]. “A identidade [europeia], independentemente de qualquer estruturação jurídica de uma unidade política, está nos Evangelhos; para além do pluralismo antropológico e histórico, encontra-se na comunhão da fé. De resto, o profético Canto II [de Os Lusíadas de Camões], quando anuncia que os lusíadas «novos mundos ao mundo vão mostrando», de modo que «por eles, de tudo em fim senhores, / serão dadas na terra leis melhores» (Canto II, xlvi), é de um globalismo cristocêntrico que trata” [13].
Se o deputado europeu Pacheco Pereira, que se diz agnóstico e, portanto, insuspeito de parcialidade neste campo, reconheceu que “é errado identificar a Europa com o modelo da revolução francesa, enquanto a unidade política e cultural da Europa é muito mais um resultado do cristianismo do que qualquer outra coisa”, não há dúvida de que a herança e as raízes cristãs da Europa estão enformadas pela Bíblia judeo-cristã
[14]. Até se poderia acrescentar a evidência de que, sem a tradição bíblica, a cultura ocidental seria incompreensível e, em conjunto, estaria mais atrasada. “A herança cristã... diz respeito à nossa cultura em geral, a qual se tornou aquilo que é, também e sobretudo porque foi intimamente «trabalhada» e forjada pela mensagem cristã ou, mais genericamente, pela revelação bíblica (Antigo e Novo Testamento)... Grande parte das conquistas da razão moderna – teóricas e práticas, até à organização racional da sociedade, ao liberalismo e à democracia – estão radicadas na tradição hebraico-cristã, e não são pensáveis fora dela” [15]. “Não existe praticamente nó na textura da existência ocidental, da consciência e da consciência de si próprios dos homens e das mulheres ocidentais (e, consequentemente, americanos) que não tenha sido tocado pela herança do hebreu. Isto aplica-se tanto ao positivista, ao teísta e ao agnóstico quanto ao crente. O desafio monoteísta, a definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente, o conceito de um Livro supremo, a noção do direito como algo inextricável em relação aos mandamentos morais, o nosso próprio sentido de História enquanto tempo revestido de propósito, têm origem na singularidade enigmática e na dispersão de Israel… A paixão de Marx pela justiça social e o historicismo messiânico estão em acordo directo com os de Amós ou Jeremias. A estranha pressuposição de Freud de um crime original – o assassínio do pai – espelha eloquentemente o cenário da queda de Adão” [16].
“A Bíblia…, o mais grandioso livro da humanidade, é o livro por excelência em que toda a nossa civilização cristã aprendeu a ler, em que todos nós, povos do Ocidente, haurimos as nossas ideias morais, artísticas e literárias, e donde brotou, como um rio poderoso de águas fecundantes, um inesgotável tesouro de santidade e de génio, desde as catedrais românicas até a O Messias de Haendel, passando pela Capela Sistina”
[17]. A Bíblia teve uma função generativa relativamente à cultura ocidental, tornando-se para ela uma espécie de léxico iconográfico e modelo ideológico. Também contribuiu para formar a consciência histórica e crítica do nosso mundo. Quem quer que explore as artes, a civilização e a história dos dois milénios do Ocidente a qualquer nível de profundidade reconhece a Bíblia como chave para as compreender e interpretar [18].
Ninguém tem dúvida de que a Bíblia, na medida em que configurou a visão cristã do mundo, é o livro que mais influência exerceu ao longo dos tempos na criatividade humana e no imaginário ocidentais
[19]. De modo especial nas artes e na literatura, ela inspirou particularmente a expressão da beleza, da nobreza, da grandeza da vida humana e das maravilhas da natureza: foi aproveitada para exprimir os sentimentos mais elevados do ser humano e para este se transcender. A Bíblia é um mundo sem fronteiras. Milhares de gerações de pessoas ao longo de séculos a leram, meditaram, veneraram, estudaram, aprenderam de cor, repetiram vezes infinitas. Deu voz à sua oração e poesia ao seu canto, no esplendor e na dor. É um poema que nunca se desgasta.
Procurar delinear esta presença na multiplicidade das suas formas, correctas ou desfiguradas, é um empreendimento ciclópico, para não dizer impossível na prática, visto que seria infinita qualquer tentativa de catalogação das mais diversas influências
[20]. Ele suporia apanhar o traçado da Tradição teológica, espiritual e artística, gerada pela Escritura. Suporia a pesquisa sobre a chamada «história dos efeitos» – a Wirkungsgeschichte. Mostramos aqui só os pontos essenciais em que incidiu o extraordinário influxo do Livro dos livros, o livro mais elevado e o mais popular. Movendo-nos sempre numa trajectória meramente exemplificativa, indicamos só alguns modelos que representem de modo emblemático este imenso influxo (fora do reduzido âmbito deste trabalho estudamos a interacção da Bíblia com o teatro, com a literatura, com a mentalidade, com a moral ocidentais).

[1] Cf. I. ILLICH, “Du lisible au visible: La naissance du texte. Un commentaire du Didascalicon de Hugues de Saint.Victor”: Œuvres complètes, II (Fayard; Paris 2005) 686-689.
[2] Cf. Ch. de HAMEL, The Book. A History of the Bible (Phaidon Press; London 2001) 190-215.
[3] Uma cópia em papel pesa aproximadamente 13.5 kg, enquanto que uma cópia em pergaminho pesa cerca de 22.5 kg. Cf. A.J. ANSELMO, “A invenção da imprensa”, Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 4 (Imprensa Nacional; Lisboa 1923) 11-12. A edição que está entre as preciosidades da biblioteca da Universidade de Coimbra é a Bíblia das 48 linhas, posterior, datada e inserindo o nome dos impressores (Fust e Schoeffer), num magnífico estado de conservação. Embora não tivesse saído da oficina do inventor da imprensa, a Bíblia de 1462 ou das 48 linhas não deixa de ser uma edição notabilíssima, um livro preciosíssimo e de extrema raridade, que também está na Academia das Ciências de Lisboa. Cf. outrossim R. PROENÇA, “Algumas notas sobre a Bíblia” Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 1 (Imprensa Nacional; Lisboa 1920) 90-91.
[4] Cf. S.M. MILLER – R.V. HUBER, The Bible: A History. The Making and Impact of the Bible (Lion Hudson; Oxford 2004) 124-131.
[5] De facto, já antes de ela estar acabada começava a longa aventura da sua tradução, para o grego: cf. P. CHUVIN, “La première aventure éditoriale: la Bible”, Initiation à l’Orient ancien. De Sumer à la Bible (Présenté par J. BOTTÉRO) (Points: Histoire 170; Seuil; Paris 1992) 334-339. Sobre a influência da famosa tradução grega do Antigo Testamento noutras línguas orientais e ocidentais, cf. Cf. M. HARL – G. DORIVAL – O. MUNNICH, La Bible grecque des Septante. Du judaïsme hellénistique au christianisme ancien (Initiations au christianisme ancien; Cerf - C.N.R.S.; Paris 1988) 330-334.
[6] Agradecemos estes dois dados à Sociedade Bíblica de Portugal.
[7] Completa, está traduzida em 429 línguas; o Novo Testamento, em 1144 (dados fornecidos pelo sítio da Internet, ZENIT, a 1.2.2008). O objectivo é, até 2025, tê-la traduzida em todas as restantes: 6.500 no total. Em 1999 as Sociedades Bíblicas por todo o mundo estavam a trabalhar em 685 projectos de tradução da Bíblia, dos quais em 468 casos se tratava de a traduzir a línguas que ainda não a possuíam traduzida: ver notícia em Le monde de la Bible 117 (1999) 87.
[8] Até a prestigiada revista Time (23.1.1995) se fez eco desta estrepitosa constatação.
[9] Cf. C.H. ROBERTS, “Books in the Graeco-Roman World and in the New Testament”, The Cambridge History of the Bible, 1 (eds. P.R. ACKROYD – C.F. EVANS) (Cambridge 1970) 48-66.
[10] Cf. A.P. DELL’ACQUA, “Storia e critica del testo del Nuovo Testamento”, Introduzione generale alla Bibbia (ed. R. FABRIS) (Logos: corso di studi biblici 1; Elle Di Ci; Torino 1994) 323.
[11] Cf. M. BOCIAN – U. KRAUT – I. LENZ (eds.), I personagi biblici. Dizionario di storia, letteratura, arte, musica (Bruno Mondadori; Milano 1997).
[12] Achamos de algum interesse apoiar a nossa visão da influência da Bíblia na cultura do Ocidente citando a opinião de consagrados conhecedores deste tema, mesmo ao preço de repetirmos algumas ideias. Desde já, deixamos a de G. STEINER, A Bíblia hebraica e a divisão entre judeus e cristãos (Antropos; Relógio D’Água; Lisboa 2006) 41: “Temos conhecimento das analogias do Génesis com outros mitos da criação do Médio Oriente, alguns dos quais podem muito bem ser mais antigos. Mas foi o primeiro livro da Bíblia hebraica que determinou, em grande medida, a formação religiosa, metafísica, moral e artístico-literária do Ocidente”.
[13] A. MOREIRA, “As Escrituras e a identidade europeia”, Theologica 38/1 (2003) 38. E continua o Prof. Adriano Moreira: “[No direito internacional], o actual objectivo de uma organização da ordem internacional marcada pela «paz pelo direito», radica na contribuição dos Projectistas da Paz, todos cristãos e europeus… Como afirmou Denis de Rougemont, na sua «Carta aberta aos Europeus»: «minha tese é simples. Consiste em recordar que a maior parte dos nossos valores e ideias, para nós Europeus, e a maior parte das nossas actividades correntes, sérias ou não, derivam da noção de homem introduzida pelo cristianismo. Não falo aqui do convertido, do homem cristão no sentido corrente, do membro da igreja, mais ou menos puro e mais ou menos moral. Falo, de uma maneira mais geral, do tipo de homem (crente ou não) que o cristianismo permitiu conceber e a que chamou pessoa»” (pp. 38-39).
[14] Cf. J.P. HAMMEL – M. LADRIÈRE, La culture occidentale dans ses racines religieuses (Hatier; Paris 1991); Ch. LABRE, Dictionnaire biblique, culturel et littéraire (Armand Collin; Paris 2002); D. JOSÉ POLICARPO, “Afinal Deus é beleza”, A transmissão do património cultural e religioso. Semana de Estudos Teológicos da Faculdade de Teologia, UCP, Lisboa 10-13.2.2003 (Ensaios 10; Paulinas; Prior Velho 2005) 120-121.
[15] G. VATTIMO, Acreditar em acreditar [o título original Credere di credere corresponderia mais a Acreditar que acredito ou Acredito acreditar] (Religiões; Relógio d’Água; Lisboa 1998) 23.64.
[16] G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 40.
[17] Paul CLAUDEL, citado em D. FOUILLOUX et alii (eds.), Dictionnaire culturel de la Bible (Cerf - Nathan; Paris 2006) 263.
[18] Cf. D. DYAS – E. HUGHES, The Bible in Western Culture. The Students Guide (Routledge; London – New York 2005) 1-9. “A «ideia de Europa» está entretecida das doutrinas e da história do cristianismo ocidental. A nossa arquitectura, arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se saturados de referências e valores cristãos. A literacia europeia desenvolveu-se a partir do ensino cristão” –afirma convictamente G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 50.
[19] É também essa a opinião de F. LOURENÇO, na Introdução à sua tradução da Odisseia de Homero (Livros Cotovia; Lisboa 2003), indicando a própria Odisseia homérica como a mais influente a seguir à Bíblia (p. 11).
[20] Cf. P. STEFANI, La radice bíblica. La Bibbia e i suoi influssi sulla cultura occidentale (Bruno Mondadori; Milano 2003).

Paulo...

PAULO, APÓSTOLO DA LIBERDADE

O nosso Santo Padre Bento XVI proclamou o ano corrente como o ano do Jubileu Paulino. Destina-se a celebrar os dois mil anos do nascimento do Apóstolo que terá ocorrido (si vera est fama) mais ou menos pelo ano oitavo da nossa era.
Não me recorda o nome do autor francês que apelidou Paulo de “le premier après l’Unique”. É o maior elogio que se pode fazer de alguém e, pela parte que me toca, subscrevo-o em absoluto.
De todos os pilares da Igreja, que nos primórdios do cristianismo edificaram os alicerces do Povo de Deus, Paulo é, de longe, aquele de quem nos ficaram mais testemunhos escritos do seu pensamento e mais documentos sobre a sua acção apostólica: refiro-me às numerosas cartas que escreveu a várias comunidades cristãs, e lembro que grande parte do livro dos Actos dos Apóstolos é dedicada a descrever a sua acção evangelizadora. Não admira, pois, que não haja praticamente escrito de pensador cristão que se dispense de invocar em benefício do que afirma a autoridade de S. Paulo. E bom será que o grosso da actividade nas celebrações deste jubileu se centre em aprofundar a doutrina do Apóstolo.
Contribuindo modestamente para tão ingente tarefa, apraz-me lembrar de S. Paulo a mensagem de liberdade que perpassa em toda a sua evangelização. Poucas citações bastam para o comprovar.
Começaremos pelo princípio lapidar essencial na segunda Epístola aos Coríntios: “Onde estiver o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor. 3, 17). Eu sei (testemunhei) que muitas vezes se pretende a força da afirmação através duma capciosa interpretação: há situações, instituições, organizações, que, por definição, se consideram moradas do Espírito do Senhor – lembremos, a título de exemplo, a Santa Inquisição. Esta presença suposta garantiria a existência da liberdade, fosse qual fosse o modo de agir. Pela minha parte, já me vi na necessidade de lembrar que é a liberdade que é verificável, experimentável, e não o Espírito do Senhor. De modo que, em termos práticos, podemos inferir da liberdade verificada a presença invisível do Espírito do Senhor. E não vice-versa. Caso contrário, seriam livres as conversões e arrependimentos conseguidos coactivamente pela Santa Inquisição – já que nela, sento santa, era suposto residir o Espírito do Senhor…
Foi em defesa da liberdade que S. Paulo escreveu, preto no branco, a regra de ouro de toda a conduta moral: “Tudo o que é feito contra os ditames da consciência é pecado” (Rom., 14, 23). Foi certamente baseado neste ensinamento paulino que o grande Papa Inocêncio III viria a ensinar que não se deve agir contra a consciência, mesmo correndo o riso de excomunhão. Foi aplicando este princípio que o próprio Paulo ousou afrontar cara a cara aPedro, Príncipe dos Apóstolos, cuja autoridade, aliás, reconhecia. É ele próprio que o refere na Epístola aos Gálatas: “Mas quando Pedro veio para Antioquia, opus-me frontalmente a ele, porque estava a comportar-se de modo condenável”. (Gal., 2, 11).
Haverá mil maneiras de os cristãos celebrarem S. Paulo neste seu ano jubilar. Uma delas será certamente esforçarem-se por serem verdadeiramente homens livres.
J. Tomaz Ferreira