A Bíblia na cultura europeia
Armindo dos Santos Vaz
A partir de um artigo com o título “A Bíblia, o livro que mudou o mundo ocidental”, publicado em 10 livros que mudaram o mundo (organização de A.I. SANTOS – A.P. JARDIM, da Câmara de Oeiras) (Quasi; Vila Nova de Famalicão 2005) 61-105, saiu agora este trabalho, substancialmente aumentado, que, prolongado na descrição da influência da Bíblia na literatura europeia, está em vias de publicação.
Introdução
Escrita numa região que fazia a junção do mundo do Oriente com o do Ocidente, a Bíblia estendeu a sua influência de forma determinante para onde se estendeu o cristianismo: o Ocidente.
Para se difundir e atravessar os séculos, ela precisou de pessoal e de material. Precisou e precisa sobretudo de um transporte pessoal: os milhões de leitores que nela beberam, a família, o grupo de reflexão, o convento, a abadia e o mosteiro, a nação, a Igreja, a catequese, a pregação… Mas também precisou e continua a precisar de um meio de transporte material que lhe dê boleia para o futuro: usou manuscritos, o rolo, o papiro, o pergaminho, o códice, o palimpsesto, os fólios monumentais e a miniatura em formato de cabeça de alfinete, os leccionários, o papel, o livro impresso, o pano e a madeira, a pedra e as imagens, o braile e a linguagem de sinais para surdos, e agora o suporte informático, electrónico, em discos compactos e outros.
Mas o transporte da Bíblia do passado para o presente era lento. O século XII ainda desconhecia a Bíblia num único grande volume. Razões técnicas e práticas impediam que isso acontecesse. Os manuscritos eram volumosos e pesados. Uma Bíblia completa teria sido intransportável e pouco manejável. As letras eram demasiado grandes para que o texto pudesse caber num só volume. No séc. XIII o tamanho das letras manuscritas foi reduzido a dimensões menores. Este factor e o uso intenso das abreviaturas contribuíram para a compressão da caligrafia. Mesmo assim, uma Bíblia do séc. XIII raramente pesava menos de cinco quilos. Seriam precisas outras técnicas para tornar uma Bíblia verdadeiramente «portátil» [1]. Uma dessas técnicas foi a imprensa.
Precisamente no uso da imprensa e de materiais para alargamento da sua influência, a Bíblia guarda a honra de ter marcado uma viragem importante da civilização: é a mais antiga, a mais célebre e a primeira obra de tomo a ser impressa pelo processo de tipos móveis. Foi a Biblia latina de Gutenberg. Impressa em Mogúncia, Mainz, provavelmente entre o ano 1454/1455 e o 24 de Agosto de 1456, é chamada “Bíblia Mazarina” ou “Bíblia das 42 linhas” por coluna, a duas colunas por página, com caracteres góticos, admiravelmente gravados numa impressão perfeitíssima. Foi feita para se parecer a um manuscrito gótico alemão. Foram impressas umas 180 cópias originais, todas iluminadas à mão, das quais sobrevivem uns 41 exemplares, 12 em pergaminho [2]. A nossa Biblioteca Nacional em Lisboa possui um exemplar em papel: de facto, algumas cópias foram impressas em pergaminho e outras em papel [3].
Portanto, até ao séc. XV o texto bíblico foi manuscrito, graças a copistas. Da necessidade de publicação e preservação dos conteúdos depressa os respectivos artefactos se tornaram também objecto de expressão artística. Do desenho da caligrafia às iluminuras que acompanhavam os textos, passando pela qualidade dos materiais usados, a Bíblia figurava então entre as obras artísticas de maior vulto. A invenção da imprensa não só veio diminuir o custo de produção como permitiu uma disseminação sem precedentes dos textos bíblicos. Se a imprensa permitiu uma produção e divulgação que tornou a Bíblia no livro mais vendido em todo o mundo, este processo despiu-a da arte que lhe conferia a cópia manuscrita [4].
A Bíblia ainda detém mais dois importantes records da história universal do livro. Um dos exemplares desta primeira impressão da Bíblia foi vendido pelo valor mais alto alguma vez atingido por um livro: 250.000 contos em 1978. Além disso, é de longe o livro mais traduzido e divulgado, já desde a antiguidade anterior ao Novo Testamento [5]. O processo de tradução e retradução tem sido contínuo ao longo de mais de dois milénios. Só as Sociedades Bíblicas distribuem anualmente em todo o mundo cerca de 500 milhões de Bíblias [6]. A Bíblia, na totalidade ou em partes substanciais (pelo menos, um livro completo), está traduzida para mais de 2426 línguas diferentes [7]. Em português há mais de vinte versões, oriundas de Portugal e do Brasil. É o livro mais reproduzido, mais lido e referenciado de todos os tempos. Também se pode dizer que é o acto de linguagem mais largamente publicado e difundido à face da Terra.
Esses dados históricos determinaram ainda mais a sua influência e a sua difusão.
Particularmente o Novo Testamento teve na cultura do Ocidente uma influência muito superior à de qualquer outro livro da antiguidade. Um testemunho dessa influência pode ver-se no facto de o seu texto no original grego ter chegado até nós numa quantidade de cópias incomparavelmente maior do que a de qualquer outra obra do mundo clássico. Ao todo, conhecem-se e conservam-se 5.488 antigos manuscritos gregos com partes, com alguns livros ou com a totalidade do Novo Testamento: é de longe a base textual mais alargada para qualquer corpus de escrita antiga na língua original [8]. Em termos de conservação, o Novo Testamento supera sem comparação muitos outros livros clássicos antigos, que chegaram até nós fragmentários e em raríssimos códices, normalmente posteriores, em muitos séculos, ao texto original. Exceptuando o caso de autores muito populares como Homero e Virgílio, é raro que obras da antiguidade contem mais de meia dúzia de manuscritos anteriores ao fim da Idade Média. Salvo fragmentos, não há manuscritos de clássicos gregos anteriores ao séc. IX e muito poucos anteriores ao séc. XII [9]. Aos 5.488 manuscritos do Novo Testamento na língua original é preciso acrescentar uns 10.000 manuscritos das diferentes versões antigas, bem como milhares de citações contidas nos escritos dos Padres da Igreja [10]. Esta boa conservação do texto explica a sua influência na sociedade e é resultado dela.
A presença decisiva da Bíblia nos países do Ocidente sente-se em múltiplos aspectos da vida, da cultura, da política, das ciências, das artes, da literatura e da linguagem, da mentalidade, da religião, das leis, da moral e da história [11]. Valores fundamentais do direito ocidental são de origem bíblica. A Bíblia dá, abundantemente, forma à nossa identidade histórica, cultural, religiosa e social [12]. “A identidade [europeia], independentemente de qualquer estruturação jurídica de uma unidade política, está nos Evangelhos; para além do pluralismo antropológico e histórico, encontra-se na comunhão da fé. De resto, o profético Canto II [de Os Lusíadas de Camões], quando anuncia que os lusíadas «novos mundos ao mundo vão mostrando», de modo que «por eles, de tudo em fim senhores, / serão dadas na terra leis melhores» (Canto II, xlvi), é de um globalismo cristocêntrico que trata” [13].
Se o deputado europeu Pacheco Pereira, que se diz agnóstico e, portanto, insuspeito de parcialidade neste campo, reconheceu que “é errado identificar a Europa com o modelo da revolução francesa, enquanto a unidade política e cultural da Europa é muito mais um resultado do cristianismo do que qualquer outra coisa”, não há dúvida de que a herança e as raízes cristãs da Europa estão enformadas pela Bíblia judeo-cristã [14]. Até se poderia acrescentar a evidência de que, sem a tradição bíblica, a cultura ocidental seria incompreensível e, em conjunto, estaria mais atrasada. “A herança cristã... diz respeito à nossa cultura em geral, a qual se tornou aquilo que é, também e sobretudo porque foi intimamente «trabalhada» e forjada pela mensagem cristã ou, mais genericamente, pela revelação bíblica (Antigo e Novo Testamento)... Grande parte das conquistas da razão moderna – teóricas e práticas, até à organização racional da sociedade, ao liberalismo e à democracia – estão radicadas na tradição hebraico-cristã, e não são pensáveis fora dela” [15]. “Não existe praticamente nó na textura da existência ocidental, da consciência e da consciência de si próprios dos homens e das mulheres ocidentais (e, consequentemente, americanos) que não tenha sido tocado pela herança do hebreu. Isto aplica-se tanto ao positivista, ao teísta e ao agnóstico quanto ao crente. O desafio monoteísta, a definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente, o conceito de um Livro supremo, a noção do direito como algo inextricável em relação aos mandamentos morais, o nosso próprio sentido de História enquanto tempo revestido de propósito, têm origem na singularidade enigmática e na dispersão de Israel… A paixão de Marx pela justiça social e o historicismo messiânico estão em acordo directo com os de Amós ou Jeremias. A estranha pressuposição de Freud de um crime original – o assassínio do pai – espelha eloquentemente o cenário da queda de Adão” [16].
“A Bíblia…, o mais grandioso livro da humanidade, é o livro por excelência em que toda a nossa civilização cristã aprendeu a ler, em que todos nós, povos do Ocidente, haurimos as nossas ideias morais, artísticas e literárias, e donde brotou, como um rio poderoso de águas fecundantes, um inesgotável tesouro de santidade e de génio, desde as catedrais românicas até a O Messias de Haendel, passando pela Capela Sistina” [17]. A Bíblia teve uma função generativa relativamente à cultura ocidental, tornando-se para ela uma espécie de léxico iconográfico e modelo ideológico. Também contribuiu para formar a consciência histórica e crítica do nosso mundo. Quem quer que explore as artes, a civilização e a história dos dois milénios do Ocidente a qualquer nível de profundidade reconhece a Bíblia como chave para as compreender e interpretar [18].
Ninguém tem dúvida de que a Bíblia, na medida em que configurou a visão cristã do mundo, é o livro que mais influência exerceu ao longo dos tempos na criatividade humana e no imaginário ocidentais [19]. De modo especial nas artes e na literatura, ela inspirou particularmente a expressão da beleza, da nobreza, da grandeza da vida humana e das maravilhas da natureza: foi aproveitada para exprimir os sentimentos mais elevados do ser humano e para este se transcender. A Bíblia é um mundo sem fronteiras. Milhares de gerações de pessoas ao longo de séculos a leram, meditaram, veneraram, estudaram, aprenderam de cor, repetiram vezes infinitas. Deu voz à sua oração e poesia ao seu canto, no esplendor e na dor. É um poema que nunca se desgasta.
Procurar delinear esta presença na multiplicidade das suas formas, correctas ou desfiguradas, é um empreendimento ciclópico, para não dizer impossível na prática, visto que seria infinita qualquer tentativa de catalogação das mais diversas influências [20]. Ele suporia apanhar o traçado da Tradição teológica, espiritual e artística, gerada pela Escritura. Suporia a pesquisa sobre a chamada «história dos efeitos» – a Wirkungsgeschichte. Mostramos aqui só os pontos essenciais em que incidiu o extraordinário influxo do Livro dos livros, o livro mais elevado e o mais popular. Movendo-nos sempre numa trajectória meramente exemplificativa, indicamos só alguns modelos que representem de modo emblemático este imenso influxo (fora do reduzido âmbito deste trabalho estudamos a interacção da Bíblia com o teatro, com a literatura, com a mentalidade, com a moral ocidentais).
[1] Cf. I. ILLICH, “Du lisible au visible: La naissance du texte. Un commentaire du Didascalicon de Hugues de Saint.Victor”: Œuvres complètes, II (Fayard; Paris 2005) 686-689.
[2] Cf. Ch. de HAMEL, The Book. A History of the Bible (Phaidon Press; London 2001) 190-215.
[3] Uma cópia em papel pesa aproximadamente 13.5 kg, enquanto que uma cópia em pergaminho pesa cerca de 22.5 kg. Cf. A.J. ANSELMO, “A invenção da imprensa”, Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 4 (Imprensa Nacional; Lisboa 1923) 11-12. A edição que está entre as preciosidades da biblioteca da Universidade de Coimbra é a Bíblia das 48 linhas, posterior, datada e inserindo o nome dos impressores (Fust e Schoeffer), num magnífico estado de conservação. Embora não tivesse saído da oficina do inventor da imprensa, a Bíblia de 1462 ou das 48 linhas não deixa de ser uma edição notabilíssima, um livro preciosíssimo e de extrema raridade, que também está na Academia das Ciências de Lisboa. Cf. outrossim R. PROENÇA, “Algumas notas sobre a Bíblia” Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 1 (Imprensa Nacional; Lisboa 1920) 90-91.
[4] Cf. S.M. MILLER – R.V. HUBER, The Bible: A History. The Making and Impact of the Bible (Lion Hudson; Oxford 2004) 124-131.
[5] De facto, já antes de ela estar acabada começava a longa aventura da sua tradução, para o grego: cf. P. CHUVIN, “La première aventure éditoriale: la Bible”, Initiation à l’Orient ancien. De Sumer à la Bible (Présenté par J. BOTTÉRO) (Points: Histoire 170; Seuil; Paris 1992) 334-339. Sobre a influência da famosa tradução grega do Antigo Testamento noutras línguas orientais e ocidentais, cf. Cf. M. HARL – G. DORIVAL – O. MUNNICH, La Bible grecque des Septante. Du judaïsme hellénistique au christianisme ancien (Initiations au christianisme ancien; Cerf - C.N.R.S.; Paris 1988) 330-334.
[6] Agradecemos estes dois dados à Sociedade Bíblica de Portugal.
[7] Completa, está traduzida em 429 línguas; o Novo Testamento, em 1144 (dados fornecidos pelo sítio da Internet, ZENIT, a 1.2.2008). O objectivo é, até 2025, tê-la traduzida em todas as restantes: 6.500 no total. Em 1999 as Sociedades Bíblicas por todo o mundo estavam a trabalhar em 685 projectos de tradução da Bíblia, dos quais em 468 casos se tratava de a traduzir a línguas que ainda não a possuíam traduzida: ver notícia em Le monde de la Bible 117 (1999) 87.
[8] Até a prestigiada revista Time (23.1.1995) se fez eco desta estrepitosa constatação.
[9] Cf. C.H. ROBERTS, “Books in the Graeco-Roman World and in the New Testament”, The Cambridge History of the Bible, 1 (eds. P.R. ACKROYD – C.F. EVANS) (Cambridge 1970) 48-66.
[10] Cf. A.P. DELL’ACQUA, “Storia e critica del testo del Nuovo Testamento”, Introduzione generale alla Bibbia (ed. R. FABRIS) (Logos: corso di studi biblici 1; Elle Di Ci; Torino 1994) 323.
[11] Cf. M. BOCIAN – U. KRAUT – I. LENZ (eds.), I personagi biblici. Dizionario di storia, letteratura, arte, musica (Bruno Mondadori; Milano 1997).
[12] Achamos de algum interesse apoiar a nossa visão da influência da Bíblia na cultura do Ocidente citando a opinião de consagrados conhecedores deste tema, mesmo ao preço de repetirmos algumas ideias. Desde já, deixamos a de G. STEINER, A Bíblia hebraica e a divisão entre judeus e cristãos (Antropos; Relógio D’Água; Lisboa 2006) 41: “Temos conhecimento das analogias do Génesis com outros mitos da criação do Médio Oriente, alguns dos quais podem muito bem ser mais antigos. Mas foi o primeiro livro da Bíblia hebraica que determinou, em grande medida, a formação religiosa, metafísica, moral e artístico-literária do Ocidente”.
[13] A. MOREIRA, “As Escrituras e a identidade europeia”, Theologica 38/1 (2003) 38. E continua o Prof. Adriano Moreira: “[No direito internacional], o actual objectivo de uma organização da ordem internacional marcada pela «paz pelo direito», radica na contribuição dos Projectistas da Paz, todos cristãos e europeus… Como afirmou Denis de Rougemont, na sua «Carta aberta aos Europeus»: «minha tese é simples. Consiste em recordar que a maior parte dos nossos valores e ideias, para nós Europeus, e a maior parte das nossas actividades correntes, sérias ou não, derivam da noção de homem introduzida pelo cristianismo. Não falo aqui do convertido, do homem cristão no sentido corrente, do membro da igreja, mais ou menos puro e mais ou menos moral. Falo, de uma maneira mais geral, do tipo de homem (crente ou não) que o cristianismo permitiu conceber e a que chamou pessoa»” (pp. 38-39).
[14] Cf. J.P. HAMMEL – M. LADRIÈRE, La culture occidentale dans ses racines religieuses (Hatier; Paris 1991); Ch. LABRE, Dictionnaire biblique, culturel et littéraire (Armand Collin; Paris 2002); D. JOSÉ POLICARPO, “Afinal Deus é beleza”, A transmissão do património cultural e religioso. Semana de Estudos Teológicos da Faculdade de Teologia, UCP, Lisboa 10-13.2.2003 (Ensaios 10; Paulinas; Prior Velho 2005) 120-121.
[15] G. VATTIMO, Acreditar em acreditar [o título original Credere di credere corresponderia mais a Acreditar que acredito ou Acredito acreditar] (Religiões; Relógio d’Água; Lisboa 1998) 23.64.
[16] G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 40.
[17] Paul CLAUDEL, citado em D. FOUILLOUX et alii (eds.), Dictionnaire culturel de la Bible (Cerf - Nathan; Paris 2006) 263.
[18] Cf. D. DYAS – E. HUGHES, The Bible in Western Culture. The Students Guide (Routledge; London – New York 2005) 1-9. “A «ideia de Europa» está entretecida das doutrinas e da história do cristianismo ocidental. A nossa arquitectura, arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se saturados de referências e valores cristãos. A literacia europeia desenvolveu-se a partir do ensino cristão” –afirma convictamente G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 50.
[19] É também essa a opinião de F. LOURENÇO, na Introdução à sua tradução da Odisseia de Homero (Livros Cotovia; Lisboa 2003), indicando a própria Odisseia homérica como a mais influente a seguir à Bíblia (p. 11).
[20] Cf. P. STEFANI, La radice bíblica. La Bibbia e i suoi influssi sulla cultura occidentale (Bruno Mondadori; Milano 2003).
Armindo dos Santos Vaz
A partir de um artigo com o título “A Bíblia, o livro que mudou o mundo ocidental”, publicado em 10 livros que mudaram o mundo (organização de A.I. SANTOS – A.P. JARDIM, da Câmara de Oeiras) (Quasi; Vila Nova de Famalicão 2005) 61-105, saiu agora este trabalho, substancialmente aumentado, que, prolongado na descrição da influência da Bíblia na literatura europeia, está em vias de publicação.
Introdução
Escrita numa região que fazia a junção do mundo do Oriente com o do Ocidente, a Bíblia estendeu a sua influência de forma determinante para onde se estendeu o cristianismo: o Ocidente.
Para se difundir e atravessar os séculos, ela precisou de pessoal e de material. Precisou e precisa sobretudo de um transporte pessoal: os milhões de leitores que nela beberam, a família, o grupo de reflexão, o convento, a abadia e o mosteiro, a nação, a Igreja, a catequese, a pregação… Mas também precisou e continua a precisar de um meio de transporte material que lhe dê boleia para o futuro: usou manuscritos, o rolo, o papiro, o pergaminho, o códice, o palimpsesto, os fólios monumentais e a miniatura em formato de cabeça de alfinete, os leccionários, o papel, o livro impresso, o pano e a madeira, a pedra e as imagens, o braile e a linguagem de sinais para surdos, e agora o suporte informático, electrónico, em discos compactos e outros.
Mas o transporte da Bíblia do passado para o presente era lento. O século XII ainda desconhecia a Bíblia num único grande volume. Razões técnicas e práticas impediam que isso acontecesse. Os manuscritos eram volumosos e pesados. Uma Bíblia completa teria sido intransportável e pouco manejável. As letras eram demasiado grandes para que o texto pudesse caber num só volume. No séc. XIII o tamanho das letras manuscritas foi reduzido a dimensões menores. Este factor e o uso intenso das abreviaturas contribuíram para a compressão da caligrafia. Mesmo assim, uma Bíblia do séc. XIII raramente pesava menos de cinco quilos. Seriam precisas outras técnicas para tornar uma Bíblia verdadeiramente «portátil» [1]. Uma dessas técnicas foi a imprensa.
Precisamente no uso da imprensa e de materiais para alargamento da sua influência, a Bíblia guarda a honra de ter marcado uma viragem importante da civilização: é a mais antiga, a mais célebre e a primeira obra de tomo a ser impressa pelo processo de tipos móveis. Foi a Biblia latina de Gutenberg. Impressa em Mogúncia, Mainz, provavelmente entre o ano 1454/1455 e o 24 de Agosto de 1456, é chamada “Bíblia Mazarina” ou “Bíblia das 42 linhas” por coluna, a duas colunas por página, com caracteres góticos, admiravelmente gravados numa impressão perfeitíssima. Foi feita para se parecer a um manuscrito gótico alemão. Foram impressas umas 180 cópias originais, todas iluminadas à mão, das quais sobrevivem uns 41 exemplares, 12 em pergaminho [2]. A nossa Biblioteca Nacional em Lisboa possui um exemplar em papel: de facto, algumas cópias foram impressas em pergaminho e outras em papel [3].
Portanto, até ao séc. XV o texto bíblico foi manuscrito, graças a copistas. Da necessidade de publicação e preservação dos conteúdos depressa os respectivos artefactos se tornaram também objecto de expressão artística. Do desenho da caligrafia às iluminuras que acompanhavam os textos, passando pela qualidade dos materiais usados, a Bíblia figurava então entre as obras artísticas de maior vulto. A invenção da imprensa não só veio diminuir o custo de produção como permitiu uma disseminação sem precedentes dos textos bíblicos. Se a imprensa permitiu uma produção e divulgação que tornou a Bíblia no livro mais vendido em todo o mundo, este processo despiu-a da arte que lhe conferia a cópia manuscrita [4].
A Bíblia ainda detém mais dois importantes records da história universal do livro. Um dos exemplares desta primeira impressão da Bíblia foi vendido pelo valor mais alto alguma vez atingido por um livro: 250.000 contos em 1978. Além disso, é de longe o livro mais traduzido e divulgado, já desde a antiguidade anterior ao Novo Testamento [5]. O processo de tradução e retradução tem sido contínuo ao longo de mais de dois milénios. Só as Sociedades Bíblicas distribuem anualmente em todo o mundo cerca de 500 milhões de Bíblias [6]. A Bíblia, na totalidade ou em partes substanciais (pelo menos, um livro completo), está traduzida para mais de 2426 línguas diferentes [7]. Em português há mais de vinte versões, oriundas de Portugal e do Brasil. É o livro mais reproduzido, mais lido e referenciado de todos os tempos. Também se pode dizer que é o acto de linguagem mais largamente publicado e difundido à face da Terra.
Esses dados históricos determinaram ainda mais a sua influência e a sua difusão.
Particularmente o Novo Testamento teve na cultura do Ocidente uma influência muito superior à de qualquer outro livro da antiguidade. Um testemunho dessa influência pode ver-se no facto de o seu texto no original grego ter chegado até nós numa quantidade de cópias incomparavelmente maior do que a de qualquer outra obra do mundo clássico. Ao todo, conhecem-se e conservam-se 5.488 antigos manuscritos gregos com partes, com alguns livros ou com a totalidade do Novo Testamento: é de longe a base textual mais alargada para qualquer corpus de escrita antiga na língua original [8]. Em termos de conservação, o Novo Testamento supera sem comparação muitos outros livros clássicos antigos, que chegaram até nós fragmentários e em raríssimos códices, normalmente posteriores, em muitos séculos, ao texto original. Exceptuando o caso de autores muito populares como Homero e Virgílio, é raro que obras da antiguidade contem mais de meia dúzia de manuscritos anteriores ao fim da Idade Média. Salvo fragmentos, não há manuscritos de clássicos gregos anteriores ao séc. IX e muito poucos anteriores ao séc. XII [9]. Aos 5.488 manuscritos do Novo Testamento na língua original é preciso acrescentar uns 10.000 manuscritos das diferentes versões antigas, bem como milhares de citações contidas nos escritos dos Padres da Igreja [10]. Esta boa conservação do texto explica a sua influência na sociedade e é resultado dela.
A presença decisiva da Bíblia nos países do Ocidente sente-se em múltiplos aspectos da vida, da cultura, da política, das ciências, das artes, da literatura e da linguagem, da mentalidade, da religião, das leis, da moral e da história [11]. Valores fundamentais do direito ocidental são de origem bíblica. A Bíblia dá, abundantemente, forma à nossa identidade histórica, cultural, religiosa e social [12]. “A identidade [europeia], independentemente de qualquer estruturação jurídica de uma unidade política, está nos Evangelhos; para além do pluralismo antropológico e histórico, encontra-se na comunhão da fé. De resto, o profético Canto II [de Os Lusíadas de Camões], quando anuncia que os lusíadas «novos mundos ao mundo vão mostrando», de modo que «por eles, de tudo em fim senhores, / serão dadas na terra leis melhores» (Canto II, xlvi), é de um globalismo cristocêntrico que trata” [13].
Se o deputado europeu Pacheco Pereira, que se diz agnóstico e, portanto, insuspeito de parcialidade neste campo, reconheceu que “é errado identificar a Europa com o modelo da revolução francesa, enquanto a unidade política e cultural da Europa é muito mais um resultado do cristianismo do que qualquer outra coisa”, não há dúvida de que a herança e as raízes cristãs da Europa estão enformadas pela Bíblia judeo-cristã [14]. Até se poderia acrescentar a evidência de que, sem a tradição bíblica, a cultura ocidental seria incompreensível e, em conjunto, estaria mais atrasada. “A herança cristã... diz respeito à nossa cultura em geral, a qual se tornou aquilo que é, também e sobretudo porque foi intimamente «trabalhada» e forjada pela mensagem cristã ou, mais genericamente, pela revelação bíblica (Antigo e Novo Testamento)... Grande parte das conquistas da razão moderna – teóricas e práticas, até à organização racional da sociedade, ao liberalismo e à democracia – estão radicadas na tradição hebraico-cristã, e não são pensáveis fora dela” [15]. “Não existe praticamente nó na textura da existência ocidental, da consciência e da consciência de si próprios dos homens e das mulheres ocidentais (e, consequentemente, americanos) que não tenha sido tocado pela herança do hebreu. Isto aplica-se tanto ao positivista, ao teísta e ao agnóstico quanto ao crente. O desafio monoteísta, a definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente, o conceito de um Livro supremo, a noção do direito como algo inextricável em relação aos mandamentos morais, o nosso próprio sentido de História enquanto tempo revestido de propósito, têm origem na singularidade enigmática e na dispersão de Israel… A paixão de Marx pela justiça social e o historicismo messiânico estão em acordo directo com os de Amós ou Jeremias. A estranha pressuposição de Freud de um crime original – o assassínio do pai – espelha eloquentemente o cenário da queda de Adão” [16].
“A Bíblia…, o mais grandioso livro da humanidade, é o livro por excelência em que toda a nossa civilização cristã aprendeu a ler, em que todos nós, povos do Ocidente, haurimos as nossas ideias morais, artísticas e literárias, e donde brotou, como um rio poderoso de águas fecundantes, um inesgotável tesouro de santidade e de génio, desde as catedrais românicas até a O Messias de Haendel, passando pela Capela Sistina” [17]. A Bíblia teve uma função generativa relativamente à cultura ocidental, tornando-se para ela uma espécie de léxico iconográfico e modelo ideológico. Também contribuiu para formar a consciência histórica e crítica do nosso mundo. Quem quer que explore as artes, a civilização e a história dos dois milénios do Ocidente a qualquer nível de profundidade reconhece a Bíblia como chave para as compreender e interpretar [18].
Ninguém tem dúvida de que a Bíblia, na medida em que configurou a visão cristã do mundo, é o livro que mais influência exerceu ao longo dos tempos na criatividade humana e no imaginário ocidentais [19]. De modo especial nas artes e na literatura, ela inspirou particularmente a expressão da beleza, da nobreza, da grandeza da vida humana e das maravilhas da natureza: foi aproveitada para exprimir os sentimentos mais elevados do ser humano e para este se transcender. A Bíblia é um mundo sem fronteiras. Milhares de gerações de pessoas ao longo de séculos a leram, meditaram, veneraram, estudaram, aprenderam de cor, repetiram vezes infinitas. Deu voz à sua oração e poesia ao seu canto, no esplendor e na dor. É um poema que nunca se desgasta.
Procurar delinear esta presença na multiplicidade das suas formas, correctas ou desfiguradas, é um empreendimento ciclópico, para não dizer impossível na prática, visto que seria infinita qualquer tentativa de catalogação das mais diversas influências [20]. Ele suporia apanhar o traçado da Tradição teológica, espiritual e artística, gerada pela Escritura. Suporia a pesquisa sobre a chamada «história dos efeitos» – a Wirkungsgeschichte. Mostramos aqui só os pontos essenciais em que incidiu o extraordinário influxo do Livro dos livros, o livro mais elevado e o mais popular. Movendo-nos sempre numa trajectória meramente exemplificativa, indicamos só alguns modelos que representem de modo emblemático este imenso influxo (fora do reduzido âmbito deste trabalho estudamos a interacção da Bíblia com o teatro, com a literatura, com a mentalidade, com a moral ocidentais).
[1] Cf. I. ILLICH, “Du lisible au visible: La naissance du texte. Un commentaire du Didascalicon de Hugues de Saint.Victor”: Œuvres complètes, II (Fayard; Paris 2005) 686-689.
[2] Cf. Ch. de HAMEL, The Book. A History of the Bible (Phaidon Press; London 2001) 190-215.
[3] Uma cópia em papel pesa aproximadamente 13.5 kg, enquanto que uma cópia em pergaminho pesa cerca de 22.5 kg. Cf. A.J. ANSELMO, “A invenção da imprensa”, Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 4 (Imprensa Nacional; Lisboa 1923) 11-12. A edição que está entre as preciosidades da biblioteca da Universidade de Coimbra é a Bíblia das 48 linhas, posterior, datada e inserindo o nome dos impressores (Fust e Schoeffer), num magnífico estado de conservação. Embora não tivesse saído da oficina do inventor da imprensa, a Bíblia de 1462 ou das 48 linhas não deixa de ser uma edição notabilíssima, um livro preciosíssimo e de extrema raridade, que também está na Academia das Ciências de Lisboa. Cf. outrossim R. PROENÇA, “Algumas notas sobre a Bíblia” Anais das bibliotecas e arquivos portugueses, vol. 1 (Imprensa Nacional; Lisboa 1920) 90-91.
[4] Cf. S.M. MILLER – R.V. HUBER, The Bible: A History. The Making and Impact of the Bible (Lion Hudson; Oxford 2004) 124-131.
[5] De facto, já antes de ela estar acabada começava a longa aventura da sua tradução, para o grego: cf. P. CHUVIN, “La première aventure éditoriale: la Bible”, Initiation à l’Orient ancien. De Sumer à la Bible (Présenté par J. BOTTÉRO) (Points: Histoire 170; Seuil; Paris 1992) 334-339. Sobre a influência da famosa tradução grega do Antigo Testamento noutras línguas orientais e ocidentais, cf. Cf. M. HARL – G. DORIVAL – O. MUNNICH, La Bible grecque des Septante. Du judaïsme hellénistique au christianisme ancien (Initiations au christianisme ancien; Cerf - C.N.R.S.; Paris 1988) 330-334.
[6] Agradecemos estes dois dados à Sociedade Bíblica de Portugal.
[7] Completa, está traduzida em 429 línguas; o Novo Testamento, em 1144 (dados fornecidos pelo sítio da Internet, ZENIT, a 1.2.2008). O objectivo é, até 2025, tê-la traduzida em todas as restantes: 6.500 no total. Em 1999 as Sociedades Bíblicas por todo o mundo estavam a trabalhar em 685 projectos de tradução da Bíblia, dos quais em 468 casos se tratava de a traduzir a línguas que ainda não a possuíam traduzida: ver notícia em Le monde de la Bible 117 (1999) 87.
[8] Até a prestigiada revista Time (23.1.1995) se fez eco desta estrepitosa constatação.
[9] Cf. C.H. ROBERTS, “Books in the Graeco-Roman World and in the New Testament”, The Cambridge History of the Bible, 1 (eds. P.R. ACKROYD – C.F. EVANS) (Cambridge 1970) 48-66.
[10] Cf. A.P. DELL’ACQUA, “Storia e critica del testo del Nuovo Testamento”, Introduzione generale alla Bibbia (ed. R. FABRIS) (Logos: corso di studi biblici 1; Elle Di Ci; Torino 1994) 323.
[11] Cf. M. BOCIAN – U. KRAUT – I. LENZ (eds.), I personagi biblici. Dizionario di storia, letteratura, arte, musica (Bruno Mondadori; Milano 1997).
[12] Achamos de algum interesse apoiar a nossa visão da influência da Bíblia na cultura do Ocidente citando a opinião de consagrados conhecedores deste tema, mesmo ao preço de repetirmos algumas ideias. Desde já, deixamos a de G. STEINER, A Bíblia hebraica e a divisão entre judeus e cristãos (Antropos; Relógio D’Água; Lisboa 2006) 41: “Temos conhecimento das analogias do Génesis com outros mitos da criação do Médio Oriente, alguns dos quais podem muito bem ser mais antigos. Mas foi o primeiro livro da Bíblia hebraica que determinou, em grande medida, a formação religiosa, metafísica, moral e artístico-literária do Ocidente”.
[13] A. MOREIRA, “As Escrituras e a identidade europeia”, Theologica 38/1 (2003) 38. E continua o Prof. Adriano Moreira: “[No direito internacional], o actual objectivo de uma organização da ordem internacional marcada pela «paz pelo direito», radica na contribuição dos Projectistas da Paz, todos cristãos e europeus… Como afirmou Denis de Rougemont, na sua «Carta aberta aos Europeus»: «minha tese é simples. Consiste em recordar que a maior parte dos nossos valores e ideias, para nós Europeus, e a maior parte das nossas actividades correntes, sérias ou não, derivam da noção de homem introduzida pelo cristianismo. Não falo aqui do convertido, do homem cristão no sentido corrente, do membro da igreja, mais ou menos puro e mais ou menos moral. Falo, de uma maneira mais geral, do tipo de homem (crente ou não) que o cristianismo permitiu conceber e a que chamou pessoa»” (pp. 38-39).
[14] Cf. J.P. HAMMEL – M. LADRIÈRE, La culture occidentale dans ses racines religieuses (Hatier; Paris 1991); Ch. LABRE, Dictionnaire biblique, culturel et littéraire (Armand Collin; Paris 2002); D. JOSÉ POLICARPO, “Afinal Deus é beleza”, A transmissão do património cultural e religioso. Semana de Estudos Teológicos da Faculdade de Teologia, UCP, Lisboa 10-13.2.2003 (Ensaios 10; Paulinas; Prior Velho 2005) 120-121.
[15] G. VATTIMO, Acreditar em acreditar [o título original Credere di credere corresponderia mais a Acreditar que acredito ou Acredito acreditar] (Religiões; Relógio d’Água; Lisboa 1998) 23.64.
[16] G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 40.
[17] Paul CLAUDEL, citado em D. FOUILLOUX et alii (eds.), Dictionnaire culturel de la Bible (Cerf - Nathan; Paris 2006) 263.
[18] Cf. D. DYAS – E. HUGHES, The Bible in Western Culture. The Students Guide (Routledge; London – New York 2005) 1-9. “A «ideia de Europa» está entretecida das doutrinas e da história do cristianismo ocidental. A nossa arquitectura, arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se saturados de referências e valores cristãos. A literacia europeia desenvolveu-se a partir do ensino cristão” –afirma convictamente G. STEINER, A ideia de Europa. Prefácio de José Manuel Durão Barroso (Gradiva; Lisboa 2007) 50.
[19] É também essa a opinião de F. LOURENÇO, na Introdução à sua tradução da Odisseia de Homero (Livros Cotovia; Lisboa 2003), indicando a própria Odisseia homérica como a mais influente a seguir à Bíblia (p. 11).
[20] Cf. P. STEFANI, La radice bíblica. La Bibbia e i suoi influssi sulla cultura occidentale (Bruno Mondadori; Milano 2003).