A CREMAÇÃO
Vai em crescendo o número dos que escolhem a cremação em detrimento da sepultura para acomodar os seus restos mortais ou os dos seus familiares. Segundo li, são já 47% os funerais que terminam no forno crematório onde o cadáver é reduzido a cinzas, em vez de se depositar o corpo em cova aberta na terra. Felizmente, isso não escandaliza ninguém e, nos grandes aglomerados populacionais, veio dar uma grande ajuda às autarquias, a braços com um, em muitos casos aflitivo, problema de falta de espaço para acomodar cemitérios.
Tempos houve em que a cremação do cadáver não era bem vista pela Igreja que chegou mesmo (se não estou em erro) a proibir os seus fiéis de a ela recorrerem. É compreensível. A sepultura cristã tem uma tradição secular e vem dos primórdios do cristianismo: as hoje tão veneradas catacumbas de Roma mais não eram do que cemitérios que os cristão tinham adquirido para si. Cemitério quer dizer dormitório: os fiéis adormeciam no Senhor e eram restituídos inteiros à Terra donde tinham sido tirados, para, na ressurreição, acordarem para a vida eterna, aconchegados no seio de Deus.
Como é evidente, não é por ser cremado que o corpo fica impossibilitado de ressuscitar, e a Igreja não coloca hoje qualquer obstáculo à cremação. Mas o recurso a ela merece alguma reflexão que pode ajudar-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos e a sua mentalidade dominante. E esta convive mal com a morte.
Na antiga cultura rural, pode dizer-se que a morte era olhada como a sequência natural da vida e o seu prolongamento. Nas nossas aldeias, o cemitério fazia parte do povoado. A morte apenas obrigava o defunto a mudar de casa. Por isso, participar no funeral era acompanhar o falecido à sua última morada. Os que lhe queriam bem iam ali visitá-lo e lembrá-lo.
A cremação, eliminando a presença, ainda que oculta, dos restos mortais, afigura-se com uma tentativa de apagar a memória de quem já foi, e faz perder aquela espécie de convivência entre vivos e mortos que perdurava mercê da presença do cadáver na sepultura. A saudade, que certamente continua a existir, deixou de ter um referente físico em que se centrar. E a ausência deste não pode deixar de ser uma espécie de convite ao esquecimento. Com a cremação, os mortos deixam de ter lugar na cidade dos vivos.
É um sinal dos tempos, destes tempos em que a morte é uma realidade incómoda. Por isso, há que esquecê-la e apagar os seus vestígios. É que a alternativa seria encará-la de frente – o que implicaria inevitavelmente encarar também as interrogações fundamentais sobre o sentido da vida. E a isso o homem actual mostra-se decididamente avesso.
É bem? É mal? Julgue cada um por si. Só faço notar que não é por ignorá-los que os problemas deixam de existir.
Vai em crescendo o número dos que escolhem a cremação em detrimento da sepultura para acomodar os seus restos mortais ou os dos seus familiares. Segundo li, são já 47% os funerais que terminam no forno crematório onde o cadáver é reduzido a cinzas, em vez de se depositar o corpo em cova aberta na terra. Felizmente, isso não escandaliza ninguém e, nos grandes aglomerados populacionais, veio dar uma grande ajuda às autarquias, a braços com um, em muitos casos aflitivo, problema de falta de espaço para acomodar cemitérios.
Tempos houve em que a cremação do cadáver não era bem vista pela Igreja que chegou mesmo (se não estou em erro) a proibir os seus fiéis de a ela recorrerem. É compreensível. A sepultura cristã tem uma tradição secular e vem dos primórdios do cristianismo: as hoje tão veneradas catacumbas de Roma mais não eram do que cemitérios que os cristão tinham adquirido para si. Cemitério quer dizer dormitório: os fiéis adormeciam no Senhor e eram restituídos inteiros à Terra donde tinham sido tirados, para, na ressurreição, acordarem para a vida eterna, aconchegados no seio de Deus.
Como é evidente, não é por ser cremado que o corpo fica impossibilitado de ressuscitar, e a Igreja não coloca hoje qualquer obstáculo à cremação. Mas o recurso a ela merece alguma reflexão que pode ajudar-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos e a sua mentalidade dominante. E esta convive mal com a morte.
Na antiga cultura rural, pode dizer-se que a morte era olhada como a sequência natural da vida e o seu prolongamento. Nas nossas aldeias, o cemitério fazia parte do povoado. A morte apenas obrigava o defunto a mudar de casa. Por isso, participar no funeral era acompanhar o falecido à sua última morada. Os que lhe queriam bem iam ali visitá-lo e lembrá-lo.
A cremação, eliminando a presença, ainda que oculta, dos restos mortais, afigura-se com uma tentativa de apagar a memória de quem já foi, e faz perder aquela espécie de convivência entre vivos e mortos que perdurava mercê da presença do cadáver na sepultura. A saudade, que certamente continua a existir, deixou de ter um referente físico em que se centrar. E a ausência deste não pode deixar de ser uma espécie de convite ao esquecimento. Com a cremação, os mortos deixam de ter lugar na cidade dos vivos.
É um sinal dos tempos, destes tempos em que a morte é uma realidade incómoda. Por isso, há que esquecê-la e apagar os seus vestígios. É que a alternativa seria encará-la de frente – o que implicaria inevitavelmente encarar também as interrogações fundamentais sobre o sentido da vida. E a isso o homem actual mostra-se decididamente avesso.
É bem? É mal? Julgue cada um por si. Só faço notar que não é por ignorá-los que os problemas deixam de existir.
©J. Tomaz Ferreira