sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O ESTAR CRISTÃO

Séculos de pregação errada (veja-se em Júlio Dinis, na “Morgadinha dos Canaviais” a pregação do missionário) deram do cristianismo uma ideia negativa e da vivência cristã uma imagem sombria. A vida cristã desenrolava-se sob o signo do medo do inferno, e essa atitude de medo é tudo quanto há de menos conforme à mensagem de Jesus.
O cristão sabe que é filho de Deus, que Deus o ama e que faz parte do Corpo místico de Cristo. É destas premissas que deve deduzir a sua atitude perante a vida, são elas que ditam o modo de estar cristão. Tentemos esboçar, sem a pretensão de sermos exaustivos, algumas dessas atitudes.
O amor dos outros. A atitude primeira e fundamental que decorre de ser cristão é o amor, a virtude da caridade magistralmente descrita por S. Paulo no Hino à Caridade (Cf. 1Cor., 13, 1-13) e cuja característica principal é “não procurar o seu próprio interesse” (Cf. 1Cor., 13, 5). A caridade deve ser a atitude subjacente a toda a relação do cristão com o outro: com Deus e com os demais. A caridade é um dom de Deus, como claramente indica S. Paulo: “O amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rom., 5, 5). Este amor de Deus é a fonte do amor ao próximo, que é por sua vez prova daquele: “Aquele que não ama o seu irmão... não pode amar a Deus” (1Jo., 4, 20). E quem não ama a Deus é maldito: “Se alguém não ama o Senhor, seja anátema” (1Cor., 16, 22). Cristão sem caridade não é cristão.

Esperança no plano individual. Da mensagem de Jesus consta a promessa da vida eterna: “Já somos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser... Quando se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (1Jo., 3, 2). A vida eterna é um bem de que possuímos no presente apenas a semente e a promessa pela nossa incorporação em Cristo. A vida cristã é feita desta tensão para uma felicidade futura que nunca conseguiremos por mérito nosso, mas que é a dádiva que Deus nosso Pai prometeu fazer-nos. Viver essa promessa é viverem esperança: “Conservemos firmemente a profissão da nossa esperança, pois aquele que fez a promessa é fiel” (Hebr., 10, 23).

Esperança no plano colectivo. A redenção de Cristo tem uma dimensão cósmica. Cristo é o Senhor dos crentes, mas é também o Senhor da História, o Senhor da Criação. O cristão sabe que, através das vicissitudes do tempo presente, o que está em curso é a construção dos novos céus e da nova terra: “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos uns novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça” (2Pet. 3, 13). Esse culminar da História virá, segundo o Apocalipse, como resultado da dialéctica entre as forças do bem e as forças do mal (Cf., Apoc., caps. 17-21), e o seu termo final será o domínio de Cristo sobre todas as coisas: “Quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, a fim de que Deus seja tudo em todas as coisas” (1Cor., 15, 28). O Povo de Deus vive à espera desse momento, quando for o regresso do seu Senhor, a segunda vinda de Jesus. E sabe, pela Esperança, que, quaisquer que sejam as vicissitudes presentes, esse será o termo final.

Confiança e optimismo. A vida é muitas vezes madrasta e em muitas situações somos postoa à prova por dificuldades que se nos deparam e que tantas vezes se nos afiguram impossíveis de ultrapassar. É quando nos bate à porta o desânimo e muitas vezes a tentação de duvidar do amor de Deus por nós. A verdade é que Deus nos ama e se preocupa connosco: “Até os cabelos da vossa cabeça estão contados” /(Mat., 10, 30). A atitude de confiança radica na garantia de S. Paulo: “Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças, mas, com a tentação, dará os meios de sair dela e a força para a suportar” (1Cor., 10, 13). E, se as provações nos parecerem duras, lembremo-nos de que “tudo contribui para o bem dos que amam a Deus” (Rom., 8, 28).

Alegria. Tempos houve em que se associou à tristeza a prática da vida cristã, reflexo talvez duma espiritualidade muito centrada na mortificação e numa certa diabolização das realidades terrenas. No entanto, vem-nos de Francisco de Assis o aviso: “O maior triunfo do demónio é conseguir roubar a alegria do coração dos filhos de Deus”. E de mais longe ainda, de S. Paulo, o convite, reiterado, aliás, à alegria: “Alegrai-vos sempre no Senhor. De novo o digo: alegrai-vos” (Filip., 4, 4). Esta alegria é a expressão natural da consciência de que somos filhos de Deus, de que temos um pai que cuida de nós, e a promessa duma vida que não tem fim.

Empenhamento activo. O cristão não é um mero sujeito passivo da salvação que Cristo veio trazer à Terra. Como vimos, a obra de Cristo não terminou com a Sua morte e ressurreição: subido ao Céu, confiou aos seus discípulos, a quem enviou o Espírito Santo, o encargo de continuar o Seu trabalho redentor. É essa a missão da Igreja, Povo de Deus, Corpo Místico de Cristo. Não é lícito, depois do Vaticano II, atirar para os pastores da Igreja a responsabilidade de levar a salvação ao mundo. A missão da Igreja é de todos e de cada um dos seus membros – porque todos participam do sacerdócio de Cristo para louvor do Pai, e da sua missão profética para dar testemunho da Boa Nova: “Sereis minhas testemunhas” (Act., 1, 8).

Homens livres. Os filhos de Deus só podem reconhecer como senhor o próprio Deus. Não são escravos de nada nem de ninguém: “Não recebestes um espírito que vos escravize, e volte a encher-vos de medo” (Rom., 8, 15). Ao libertar-nos da morte, Cristo libertou-nos de todos os medos e chamou-nos para a liberdade: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gal., 5, 13). O cristão recusará todas as formas de colonização espiritual, mesmo as mais subtis. Não sacrificará ao pensamento dominante, nem aos constrangimentos do socialmente correcto. Agirá sempre como um homem livre que toma em consciência as suas decisões (que se autodetermina...) e age de acordo com a sua consciência, mesmo que para isso tenha que arriscar a vida: foi o exercício da liberdade assim entendido que fez os mártires. Porque, “onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor., 3, 17).

J. Tomaz Ferreira