segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A ALMA DA EUROPA

Lembro-me de ter lido há anos esta frase de Eduardo Lourenço: “A Europa será cristã ou não será”. Não é o único a pensar assim. Colho da crónica de Frei Bento Domingues (Público, 7 de Dezembro) afirmações de Goethe (“a língua materna da Europa é o cristianismo”) e de Kant (“a fonte da qual brota a nossa civilização é o Evangelho”) que vão no mesmo sentido. E, mais explícito ainda, T. S. Eliot: “um cidadão europeu pode não pensar que o cristianismo seja verdadeiro e, contudo, o que diz e faz brota da cultura cristã de que é herdeiro. Sem cristianismo, não teria havido nem sequer um Voltaire ou um Nietzsche. Se o cristianismo desaparece, desaparece também o nosso rosto”.
Apesar de sustentada por tão ilustres nomes, a tese segundo a qual é no cristianismo que se deve procurar o âmago da alma da Europa não é hoje pacífica. Muitos a procuram alhures e para tantos a raiz do que se pode chamar o espírito europeu deve ser buscado antes nos ideais da Revolução Francesa. De facto, esses ideais, condensados na trilogia Liberdade, Igualdade, Fraternidade colhem a sua concretização menos imperfeita, antes de mais na forma de governo democrático vigente em praticamente todos os países do Velho Continente (a Bielorússia seria a excepção), e o tão proclamado modelo social europeu que a Europa apresenta como traço distintivo da sua cultura política.
Acontece que a tão apreciada tríade (Liberdade, Igualdade, Fraternidade) da Revolução Francesa deriva directamente da mensagem cristã, como claramente se demonstra alinhando alguns textos do Novo Testamento. E nem é preciso invocar-lhes o espírito: a própria letra é de si suficientemente explícita.
Poucas dúvidas haverá quanto à fraternidade. No cerne da mensagem cristã está a Boa Nova de que Deus é Pai de todos os homens e que a todos trata como filhos. A conclusão lógica é a fraternidade universal: “Um só é o vosso Mestre e vós todos sois irmãos”. (Mt., 23, 8), A que podemos juntar a síntese Paulina (Ef., 4, 5): “Um só Senhor, uma só fé, um só baptismo; um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos”.
É de resto nesta fraternidade real que radica o Amor que Cristo quis que fosse o traço distintivo da condição de cristão: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo., 13, 35).
Desta fraternidade com raiz no próprio Deus, fácil seria deduzira igualdade. Mas não é preciso – ela é formulada de forma explícita em numerosos textos. Em primeiro lugar, a igualdade entre todos os homens sem distinção de raça, de sexo, ou condição social: “Não há judeu nem grego, não há servo nem homem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal., 3, 28). Desta igualdade radical resulta que nenhum se deve considerar superior aos outros. O Evangelho dá conta das querelas que grassavam entre os discípulos para saber quem era o maior. Perguntam a Jesus quem é o maior no Reino dos Céus. Jesus chama uma criança e diz que quem se fizer pequeno como ela será o maior no Reino dos Céus. Nem o exercício do poder quebra a igualdade radical que nasce da fraternidade. Com efeito, “os príncipes deste mundo dominam as pessoas e os grandes exercem poder sobre elas; não será assim entre vós, mas entre vós o que quiser ser o maior faça-se vosso criado, e o que entre vós quiser ser o primeiro, será vosso servo” (Mt., 20, 26-27; cf. Luc., 22, 24, segs.).
Resta-nos a liberdade e talvez se julgue que esta foi ignorada ou minimizada. Nada mais contrário à mensagem do Novo Testamento que inequivocamente se apresenta como Boa Nova da libertação. Abstemo-nos de teologizar a liberdade dos filhos de Deus, e começamos por citar a proclamação lapidar de S. Paulo: “Onde está o Espírito do Senhor aí está a liberdade” (2Cor., 3, 17). Eu sei que muitos pressupõem a presença do Espírito e daí concluem, na circunstância, a presença da liberdade. Pensemos um pouco. Não é o Espírito de Deus (invisível e inobservável) que pode servir de critério donde se conclua a existência da liberdade. É esta – visível e observável – que deve servir de critério a avalizar a presença do Espírito de Deus. Não tenhamos ilusões: mesmo nas coisas mais sagradas, se não houver liberdade, não está o Espírit o do Senhor. Porque, como diz S. Paulo, “Foi para a liberdade que vós fostes chamados” (Gal., 5, 13).
Isto dito, só temos que lamentar que, ao longo dos séculos, os cristãos não tenham levado à prática a doutrina de que eram portadores. E que, por isso mesmo, a Revolução Francesa, que se reclamava de ideais eminentemente evangélicos, se tenha feito também contra a instituição Igreja. Mas quando falarmos dos ideais da Revolução Francesa, temos que nos lembrar que foi da fecunda raiz cristã que eles brotaram. Para sermos honestos, é nela que devemos procurar a alma da Europa.

J. Tomaz Ferreira