sábado, 16 de maio de 2009

O P R I M A D O D O H O M E M

Aprendemos na história que a passagem da Idade Média para a Idade Moderna foi marcada por duas revoluções que transformaram o mundo. A primeira, a revolução coperniciana, que transferiu o centro do cosmos da Terra para o Sol. Piamente se pensava que a Terra era o centro do mundo e que à sua volta tudo girava. As observações de Galileo e de Copérnico (um clérigo polaco) desfizeram a ilusão e fzeram saber que não é o Sol que gira à volta da Terra, mas a Terra que gira à volta do Sol. A segunda, foi a revolução humanista que domina todo o grande movimento literário, artístico, filosófico e religioso do Renascimento, e que, à visão medieval de um mundo centrado em Deus, contrapõe a visão de um mundo centrado no homem: o teocentrismo medieval foi substituído pelo antropocentrismo moderno.
A ideia tem vindo a fazer o seu caminho, com altos e baixos, e, embora tenha funcionado como linha orientadora de fundo dos movimentos que marcam o desenvolvimento histórico até aos nossos dias, é abusivo pensar que ela esteve sempre presente de forma consciente nos protagonistas que os iniciaram, e casos tem havido que a intenção inicial desembocou no resultado oposto àquele que era suposto ser atingido. Um caso típico é o da Reforma luterana que, iniciada para emancipar o homem da autoridade da Igreja, acabou por proclamar a sua sujeição ao arbítrio do Príncipe em matéria de religião.
Seja como for, o Concílio Vaticano II pôde assumir que “tudo quanto existe sobre a Terra deva ser ordenado em função do homem como seu centro e seu termo”; e constatar que “neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não crentes” (cf. Gaudium et Spes, 12).
Mas este princípio, que levou séculos a amadurecer na caminhada da Humanidade, foi claramente enunciado por Jesus, quando taxativamente afirmou: “O Sábado foi feito para o homem, e não o homem para o Sábado” (Mc., 2, 27). Para perceber o alcance desta proposição, é bom lembrar que o Sábado era um dia sagrado, e o dever de respeitar o descanso sabático era, senão o primeiro e maior, certamente dos primeiros e maiores deveres impostos por Deus, pelo menos na interpretação rabínica do tempo. Dizendo o que disse, Jesus subordinou ao homem o que havia de mais sagrado. Dificilmente se poderia encontrar forma mais eloquente de proclamar o primado do homem. E os cristãos dos primeiros séculos entenderam-no bem. O seu sentir foi claramente expresso por S. Ireneu quando não se inibiu de escrever: “A glória de Deus é o homem vivo”.
Quer isto dizer que na actuação da Igreja foi sempre tido em conta este primado do homem? De modo nenhum. Fenómenos como o da Inquisição demonstram exactamente o contrário. Na Inquisição proclamava-se com actos o primado da doutrina (ou, se quisermos, da Fé) sobre o Homem. Ao arrepio do Evangelho.
Ainda hoje, mau grado a solene profissão de fá no homem proclamada pelo Concílio Vaticano II, a Igreja esquece no seu proceder o primado do Homem. Cito, a título de exemplo, o caso dos padres que abandonam o sacerdócio e pretendem casar. Para que possam celebrar o Sacramento do Matrimónio, precisam duma dispensa de Roma (semelhante à que se pede para celebrar matrimónio entre parentes próximos). Paulo VI concedia essa dispensa aos que a pediam e exigia-lhes como paga que abandonassem o ministério sacerdotal. Com João Paulo II isso acabou. A Santa Sé nega-se a dar a dispensa, negando do mesmo passo implicitamente o primado do homem. No fim de contas, a lei do celibato não é comparável em importância e dignidade à Lei do Sábado. Mas parece que, segundo João Paulo II, embora o Sábado tenha sido feito para o homem, parece que aqui, foi o homem que foi feito para o celibato...
J. Tomaz Ferreira