quarta-feira, 5 de maio de 2010

D I S T R A C Ç Õ E S

Folheando uma revista inquestionavelmente católica (é dirigida por um bispo) deparei com um artigo assinado por um membro duma Congregação Religiosa onde se escrevia: “Como pode a Igreja responder a tudo isto? Fiel à missão de estar ao lado do Povo de Deus… etc.” Colocar a Igreja ao lado do Povo de Deus é fazer dela uma realidade distinta desse mesmo Povo – o que é errado, pois a Igreja é justamente o Povo de Deus, como inequivocamente foi afirmado pelo Concílio Vaticano II. A “distracção” não é de todo inócua: ela repristina um conceito de Igreja até há pouco dominante, em que a Igreja propriamente dita era apenas o clero e as ordens religiosas. No fundo revela que a pecha do clericalismo, de tão nefastas consequências, não se encontra vencida e está pronta a reaparecer a qualquer momento. Há “distracções” que são eloquentemente reveladoras…
Quando se celebram efemérides em honra de um sacerdote, julgo que ainda hoje se canta um hino que ouvi (e cantei) muitas vezes quando era novo. Rezava assim: Aleluia! Hossana e glória / cantemos hinos à flux / em louvor do sacerdote / que é na terra outro Jesus. Outra “distracção” que tem a mesma raiz, que se manifesta no “endeusamento” do clero. Ora, com todo o respeito, o sacerdote não é propriamente “outro Jesus”, pelo menos não o é mais do que qualquer outro cristão. É apenas um servidor da comunidade a que preside e que, ela sim, é outro Jesus, por constituir aquilo a que Pio XII chamou em Encíclica o Corpo místico de Cristo.
Também já vi na celebração do jubileu de um padre aplicar a ele e aos seus irmãos no sacerdócio, com carácter exclusivo, a frase tremenda de Cristo: “Vós sois o sal da Terra; se o sal perde a força, com que se há-de ele salgar? Para nada mais serve senão para deitar fora e ser pisado pelos homens” (Mt., 5, 13). Ora, a missão de ser o sal da Terra cometeu-a Cristo não apenas aos sacerdotes, mas a quantos acreditam no seu nome e se reconhecem como discípulos seus. Basta ler com atenção o capítulo 5 de S. Mateus: o sermão que ali se refere foi dirigido a todos os que seguiam Jesus. “Vendo a multidão, Jesus subiu ao monte, e, tendo-se sentado, vieram ter com ele os seus discípulos a quem ensinou, dizendo…” /Mt., 5, 1-2). É mais uma vez o clericalismo a espreitar com dois efeitos altamente perversos: carregar nos ombros do clero a missão hercúlea de salvar o mundo; desresponsabilizar os baptizados da missão profética que lhes foi cometida no Baptismo.
Em tempo de visita papal, valerá a pena apontar algumas “distracções” que transparecem nos títulos com que se adorna o Bispo de Roma. Não o fazemos ad odium, mas com o respeito que merece aquele que preside à comunhão universal da caridade, e é, como tal, a referência visível da unidade da Igreja.
Comecemos pela “distracção” que é tratar o Papa como Chefe de Estado, portanto como um soberano temporal, pouco importando se de um macro ou, como é o caso, de um micro Estado: é esta condição de Chefe de Estado que faz dele o Soberano Pontífice. O ponto é que a grandeza do Papa lhe vem de presidir o Reino de Deus e, diante de Pilatos, Jesus afirmou taxativamente: “O meu reino não é deste mundo”(Jo., 18, 36).
Fruto de outra “distracção” é o título que lhe atribuíram de Vigário de Cristo. Vigário é aquele que representa e faz as vezes de um ausente. Ora, é bom não esquecer que Cristo continua presente, incarnado, desde que subiu ao Céu, no seu Corpo místico que é a Igreja – a sua humanidade de acréscimo – de que Ele é a cabeça e que continua a sua missão salvífica. É verdade que a ausência física do Mestre iria gerar nos discípulos um sentimento de orfandade (Cf. Jo., 14, 18). Ciente disso, Jesus prometeu enviar o Espírito Santo: “Eu apelarei ao Pai e Ele vos dará outro Paráclito para que esteja sempre convosco, o Espírito da Verdade” (Jo., 14, 16-17). Este outro, sim, vai fazer as vezes do primeiro que o contexto claramente indica ser o próprio Jesus. A Pedro (de quem o Papa é sucessor) fica reservado não o papel de fazer as vezes de Cristo, mas de confirmar na Fé os seus irmãos – porque (e esta é a grandeza de Pedro) a sua fé não desfalecerá (Cf. Lc., 22, 32).
Sumo Pontífice é outro dos títulos que se aplica ao Papa. Passando por alto a mais que discutível pertinência teológica do título, à luz nomeadamente do que de Cristo se diz na Epístola aos Hebreus, sublinhe-se a “distracção” que fez esquecer a espúria origem do título. De facto, Sumo Pontífice é a tradução de Pontifex Maximus, a expressão latina com que os Papas do Renascimento assinavam os monumentos que em Roma iam fazendo erguer. Mas Pontifex Maximus era o título por que, desde o legendário rei romano Numa Pompílio, se designava o chefe do colégio dos sacerdotes que em Roma asseguravam o culto das divindades pagãs. Nos tempos do Império os imperadores apropriaram-se dele para marcarem que, também no campo religioso, era sua a autoridade máxima. Quando o cristianismo se impôs no Império, o título transferiu-se do imperador para o Bispo de Roma. O mínimo que se pode dizer é que o título é espúrio na sua origem, e de discutível solidez teológica: nada tem de cristão e muito menos de evangélico.
Rejeitando os títulos que remetem para a grandeza, a pompa e a vaidade das coisas do mundo, é melhor ver no Papa apenas o sucessor de Pedro, que morreria de espanto se visse aplicados a si os títulos que enunciámos. O título que Pedro certamente prezaria é aquele que, na sequência dos seus predecessores, Paulo VI utilizou para promulgar os documentos do Concílio Vaticano II: PAULO, BISPO, SERVO dos SERVOS DE DEUS.

J. Tomaz Ferreira