sábado, 27 de março de 2010

A MORTE DA MORTE

Nosso Senhor morreu, mas matou a morte. Nele terminou o que era causa de nossos temores. Tomou a morte e venceu-a como caçador vigoroso que se apossa do leão e o abate.
Onde está, pois, a morte? Procurai em Cristo, nada dela resta. Nele, contudo, esteve, mas está morta. Oh! Vida, morte da Morte! Tenhamos coragem, meus irmãos, a Morte morrerá em nós também. O que na cabeça começou, nos membros prosseguirá: a Morte morrerá em nós também. Morrerá quando chegar o fim dos séculos, na ressurreição dos mortos…
Ouçamos os clamores de triunfo de quando morte mão houver, de quando,em nós, como em nosso Chefe, morrer a Morte. É necessério, diz o Apóstolo S. Paulo, que este corpo da corrupção se revista da incorruptibilidade, e que, mortal, se revista da imortalidade. Então se cumprirá a palavra da Escritura: A morte foi afogada na vitória! (1Cor., 15, 53-55). Glória! Glória aos triunfadores! Morte, onde está o teu aguilhão? Com ele te pudeste apoderar, agarrar, vencer e subjugar, atingir e matar; mas agora, Morte, onde está a tua vitória, onde está o teu aguilhão? Não to quebrou o meu Senhor? No momento em que abraçaste o meu Senhor, nesse mesmo momento para mim também vencida foste e destruída.
Santo Agostinho, Sermão 233

quinta-feira, 18 de março de 2010

S O N E T O - (em tempo de Paixão)



Se sois riqueza, como estais despido?
Se Omnipotente, como desprezado?
Se Rei, como de espinhos coroado?

Se luz, como a luz tendes perdido?
Se sol divino, como eclipsado?
Se verbo, como é que estais calado?
Se vida, como estais amortecido?

Se Deus, estais como homem nessa cruz?
Se homem, como dais a um ladrão
Com tão grande poder posse dos Céus?

Ah! Que sois Deus e homem, bom Jesus!
Morrendo por Adão enquanto Adão,
E redimindo Adão enquanto Deus.

Anónimo

EM TEMPO DE PAIXÃO

Fartinhos como estamos de ouvir falar do Mistério Pascal, corremos o risco de o dar como adquirido para os cristãos que na morte realizado de forma definitiva e irrepetível. Cristo morreu e ressuscitou. É da vida que nos ganhou com a sua morte que nós vivemos – é na esperança que nos deu a sua ressurreição que caminhamos pelo mundo em direcção ao Pai. Nada a fazer, portanto, para além de gozarmos do Mistério Pascal de Cristo as certezas que Ele nos trouxe.
Pois, se o mistério pascal de Cristo foi definitivo e irrepetível, não penso que esteja acabado. Direi mesmo que se encontra profundamente incompleto, e que poderá ter laivos de fracasso se não for completado, se ficar reduzido às dimensões do Cristo físico.
E valho-me da companhia de S. Paulo para esquivar a acusação de blasfémia. Pois, se eu blasfemo, nada mais faço do que repetir a divinamente inspirada blasfémia que ele proferiu quando escreveu: “completo na minha carne… o que falta à Paixão de Cristo”. Se completa, o que falta é que nem tudo está feito – é preciso que alguém o termine.
Não foi blasfemo S. Paulo, porque, subido ao Céu, o Cristo do Mistério Pascal continua a viver o mesmo mistério – a completá-lo – na sua dimensão mística. A obra de Cristo prolonga-se no Cristo místico que é a Igreja – que somos nós – e julgo mesmo que é este prolongamento que lhe confere a sua dimensão total.
E até compreendemos que assim seja: afinal, os cristãos prolongam Cristo – é lógico que na sua vida “aconteça” mistério pascal. E pensamos nos mártires em quem a evidência desse mistério se impõe. E talvez pensemos que foram cristãos com sorte, porque chamados a repetir o mistério do seu Senhor: tiveram a oportunidade de “perder a vida ara depois a encontrarem como Cristo.
Acontece que nem todos merecem a graça do martírio. Mas sendo o mistério pascal algo de tão fundamental. Ele tem que se encontrar ao alcance de todos os cristãos. E encontra: basta sabê-lo descobrir. Não será morrer um pouco passar a vida a dar testemunho, numa linha de coerência com o Evangelho, arrostando os riscos de sofrimento, de cansaço, de mortificação? Não será morrer um pouco dedicar-se a fazer o bem, sacrificando, por amor dos outros, tempo e comodidades?
E não será recusar o mistério pascal pretender furtar-se aos sacrifícios ou deixar-se vencer pelo desânimo, ou servir apenas quando isso nos traz satisfações humanas?
Pois eu penso que se o espectacular dos martírios sangrentos serve para edificar a Igreja, não é deles que devemos esperar o seu crescimento no dia a dia dos séculos. É o mistério pascal dos cristãos escondidos, cujos nomes não hão-de figurar nas páginas do martirológio que realiza, na humildade e no escondimento, o mistério da vida da Igreja a brotar daquele “morte” feita de todas as renúncias e de todos os sofrimentos que a dedicação lhes impõe.
É na fidelidade ao ideal do AMOR cristão que havemos de fazer o “mistério pascal” das nossas vidas.
J. Tomaz Ferreira

sábado, 13 de março de 2010

EM LOUVOR DA SANTA CRUZ

Nos seus quatro braços, a Cruz de Cristo contém tudo:
tudo o que existe no Céu, na Terra e sob a Terra;
todo o visível e o invisível, todo o vivente e o não vivente.
Os quatro braços da cruz, com os seus quatro quadrantes,
expõem assim o mistério onde encontram seu ser
todas as criaturas racionais, celestes, terrestres, infernais e supra-celestes…
A Paixão de Cristo sustém tudo o que é real, ela rege o mundo, ela cega o Tártaro…
Ela mantém o que existe, conserva o que vive, anima o que sente, ilumina o que pensa.
Pelo seu poder, a Santa Cruz rodeia, comprime,
une entre si todas as realidades do alto e cá de baixo, na veneração de Cristo.

Santo Hipólito

segunda-feira, 1 de março de 2010

Deus e o Mal

Estes últimos tempos têm sido férteis em calamidades naturais que ceifaram vidas e semearam a destruição um pouco por toda a parte. Indo apenas às mais recentes, vêm-me à memória um terramoto no Haiti onde as vidas perdidas se contam por centenas de milhares, e o desespero dos sobreviventes, perante a magnitude da destruição, parecia um dedo acusador apontado a Deus supostamente bom, e que, no entanto sujeitava os seus filhos a tão grande sofrimento. Mais perto de nós foi a tragédia da Madeira que a todos nos enlutou, e a que logo se seguiu o terramoto do Chile, e outro ao lado na Argentina. Isto para não falar da tempestade que nos varreu e que em França fez contar por dezenas o número de vítimas mortais. São apenas alguns episódios recentes duma realidade que tem acompanhado o homem ao longo de toda a sua caminhada sobre a Terra. E levantam um problema que atormenta muitos espíritos: como conciliar a existência de um Deus bom, criador do mundo, com a ocorrência de tanto mal de que o homem não tem culpa? Será crível que a bondade de Deus possa coexistir com o mal que ocorre no mundo? É que a grandeza do Universo aponta como autor um Deus omnipotente e omnisciente que, por definição terá de ser infinitamente bom, um Deus que “é amor”, na definição do Apóstolo S. João. Mas todo o mal que acontece no mundo não virá contradizer essa imagem de Deus-Amor, não virá impor a inexistência de Deus? Muitos tentam arquivar o problema apelando para a justiça de Deus. Este (dizem) é bom, mas justo também e, como tal deve premiar o bem e castigar o mal. As catástrofes que se abatem sobre a Terra são o castigo que Deus envia para punir os pecados cometidos pelos homens e que bradam aos Céus pedindo justiça, como o sangue de Abel derramado por Caim. Mas a explicação cai por terra quando se verifica que o suposto castigo atinge o justo como o pecador, além de dar de Deus a imagem de um ser vingativo e castigador que não casa com o Deus-amor que a Bíblia consagra. Por mim, não penso ter encontrado a chave da solução para o problema. Mas parece-me que, perante ele, a clara opção que se me impõe é a de escolher entre o mistério e o absurdo, sendo que o mistério é a conciliação da bondade de Deus com o mal no mundo, e o absurdo seria a eliminação do problema pela eliminação de Deus como criador. Dar como não tendo causa um Universo a que hoje a ciência marca um momento em que começou a existir, e que, por isso mesmo, se tem de considerar contingente, visto não ter em si a razão da própria existência (a tê-la deveria ser eterno – logo sem começo) é, na plena acepção do termo, um verdadeiro absurdo. Já a conciliação duma causa do mundo em que a infinita bondade não impede que na sua obra se introduza o factor “mal” é um mistério para que não se encontra explicação, mas para o qual a luz da inteligência humana (sempre limitada, note-se bem) pode entrever janelas de inteligibilidade. Uma delas reside no facto atestado pela Bíblia (e pela experiência) de Deus não ter querido criar um mundo per-feito no sentido etimológico da palavra, isto é, um mundo acabado. A tarefa de completar a criação do mundo confiou-a Deus às forças da matéria, e muito especialmente ao homem. Da acção daquelas é testemunha a evolução, hoje universalmente admitida. Da acção do homem dá testemunho toda a sua história. Desde o princípio, segundo a Bíblia, Deus confiou ao homem a tarefa de “dominar a Terra”. E o que é senão o domínio da Terra aquilo que o homem tem feito ao longo dos séculos? Aquilo a que genericamente damos o nome de “progresso” mais não é do que o avançar inexorável do homem para patamares cada vez mais elevados de domínio da natureza. Não me atrevo a dizer que algum dia o homem adquira o domínio perfeito das forças da natureza, como os vulcões, os terramotos, os fenómenos atmosféricos. Força é constatar que, mercê dos progressos já feitos, a humanidade dispõe hoje de meios que lhe permitem tornar menos devastadores aqueles fenómenos. Razão de optimismo vemo-la no combate à doença. O homem não conseguiu nem conseguirá eliminar a morte. Mas os progressos da medicina fizeram com que tenha sido notavelmente estreitado o seu campo de acção. É que, como dizem os Salmos, “o Céu é do Senhor; a Terra deu-a aos filhos dos homens”. Que estes continuem o seu labor de dominar a Terra, e o mal irá progressivamente regredindo.

J. Tomaz Ferreira