domingo, 1 de junho de 2008

Uma mulher excepcional

Maria de Lourdes Belchior

Conheci Maria de Lourdes Belchior no Rio de Janeiro, em 1963, de forma tão
inesperada como surpreendente. Era a primeira vez que me encontrava no Rio de Janeiro, a começar uma investigação para a tese de doutoramento, e quem me anuncia e recomenda uma visita à Drª Profª Drª Maria de Lourdes Belchior foi Afonso Arinos de Melo Franco, uma das personagens mais ilustres da politica e da cultura brasileiras.
Era ela adido cultural da nossa Embaixada e, em boa verdade, o governo por-tuguês não podia ter feito melhor escolha para fazer esquecer o contrangimento que se instalara nos dois lados do Atlântico, consequência lógica da recepção que o Brasil fez, em Janeiro de 1961, ao navio « Santa Maria» que o Capitão Henrique Galvão desviara da sua rota para atracar, finalmente a um porto brasileiro, já sob a presidência de Jânio Quadros.
O mundo intelectual e político brasileiro rapidamente se deixou seduzir por
esta senhora de uma distinção tão natural, que até a sua elevada craveira intelectual só vinha ao de cima, quando as circunstâncias a isso se prestavam.
Mas todos estes atributos eram coisa menor perante a bondade que irradiava
da sua pessoa.
Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Presidente do Instituto de Alta Cultura, Sub-Secretária do Estado da Cultura e da Investigação Científica, a maior especialista da nossa literatura do século XVIII, galardoada com numerosas condecorações e prémios, publicou, faz agora vinte anos, um livrinho de poemas - Cancioneiro para Nossa Senhora – Poemas para uma Via Sacra, precedido, aliás da « Gramática do Mundo» em 1985». Entretanto, foi ainda professora na Universidade de Santa Bárbara, e de 1989 até à sua morte, em 1998, foi Directora do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris. Maria de Lourdes Belchior é uma figura ímpar da nos-
sa lusitanidade, do século passado. A sua memória não pode ser esquecida, e se um editor, com um pouco de sentimento e generosidade, se decidisse a reeditar
este livrinho de 68 páginas ? Não, certamente não será a sua irmã que a isso vai
obstar!

IN MEMORIAM


NOSSA SENHORA DO SÉCULO XX


Satélite do grande sol de Deus
Sputnik pisando leve a lua
galáxia expreso, galáxia fox
galáxia, caminho estrelado de
nomes vários, Senhora do século XX
Tem piedade de nós

Na viragem do tempo angustiado
no mar encapelado sempre encapelado
há-de ser o mar? no mar da vida
acode-nos, Senhora, e toma o leme
da embarcação senão sossobramos
Tem piedade de nós, Senhora

Embarcação electrónica, supersónica
a nova arca de Noé, apetrechada
para vencer as terríveis tempestades
fechada a sete chaves navegará
Tem piedade de nós, Senhora

Navegará. Se o fim dos tempos chegar
Para onde o porto de salvação?
Haverá inda e porto e terra e mar?
Quando o fim dos tempos chegar
Como será? Tudo vai sossobrar?
Tem piedade de nós, Senhora.

Robots, raios lasers, computadores
monstros mecânicos do futuro
paisagens lunares de desolação,
destruição, caos, fim da humanidade
Tem piedade de nós, Senhora

Senhora do século XX e de todos os séculos
engenho e ponte, « ranger» cortando o espaço
alumínio puríssimo, suporte sem peso,
síntese de todos os metais amalgamados
acesso à distância sem termo
porta aberta para o infinitamente longe
Tu Mãe, Senhora e medianeira
Tem piedade de nós
Ensina-nos, Senhora,
nave espacial segura
na agrura dos dias
a rota derradeira
a rota verdadeira


Lisboa, 31 de Maio de 2008
Fernando Moura