segunda-feira, 3 de março de 2008

Penitência - um texto de J. Tomáz Ferreira

*Alfa e Omega

PENITÊNCIA

Estamos fartos de ouvir que a Quaresma é tempo de penitência. E, induzidos pela própria disciplina da Igreja, somos levados a pensar que penitência é o mesmo que mortificação. Com efeito, em tempos não muito distantes, a Igreja impunha aos fiéis durante a Quaresma uma severa mortificação, que se traduzia na abstinência de comer carne, e no dever de jejuar três dias por semana.
Também na mensagem de Fátima aparece o apelo à penitência, que ainda hoje ressoa nos cânticos do Santuário: “Penitência e oração se fizesse lhes pedia”. E também os pastorinhos – reza a sua hagiografia – traduziram em mortificação corporal a penitência que a Senhora lhes pedia, fazendo sacrifícios que ofereciam a Deus pela conversão dos pecadores. O seu exemplo foi seguido pelos peregrinos, que ainda hoje vemos arrastarem-se de joelhos pelo recinto, até a Capelinha das Aparições.
Longe de nós menosprezarmos o valor da mortificação que tem raízes profundas na espiritualidade cristã. O que desejamos é sublinhar que mortificação e penitência são realidades diferentes, e como tais devem ser encaradas e praticadas.
Segundo os testemunhos de Mateus (cap.4) e de Marcos (cap.1), Jesus inicia a sua pregação com o apelo à penitência: “Fazei penitência, porque o Reino de Deus está próximo” (Mt., 4, 17). Só que este “Fazei penitência”, que S. Jerónimo consagrou na sua tradução latina do Novo Testamento, melhor se traduziria por “convertei-vos”, já que o verbo que no original grego é usado no imperativo, tem a sua raiz etimológica no substantivo “metanóia”, que quer dizer “mudança”, “transformação”.
Assim, “fazer penitência” é fundamentalmente empreender um esforço sério no sentido da mudança das atitudes interiores que determinam a nossa conduta de vida. É que, na base dos actos que praticamos estão escolhas profundas que fizemos como caminhos de vida, e que ditam o nosso agir concreto, o nosso comportamento na vida. As nossas acções, tal como as nossas omissões são o espelho das opções profundas que fizemos e em que fixámos o nosso ideal de realização humana. São a tradução prática da nossa atitude perante a vida.
Fazer penitência é, pois, empreender o esforço, primeiro de identificação dos valores que, consciente ou inconscientemente assimilámos como ideal de vida; depois, de comparação com o ideal de vida que nos é proposto por Jesus no que disse, no que fez, no que rejeitou.
É este esforço de transformação que deve constituir a grande preocupação dos que pretendem bem viver a Quaresma. E não me parece haver dúvidas de que este esforço, se for honesto e sério, terá mais valor do que todos os jejuns e todas as abstinências com que mortificarmos a nossa carne.
J. Tomáz Ferreira
*Alfa e Omega (assuntos religiosos)