segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

A Sagrada Familia

A SAGRADA FAMILIA


André Wénin


A revista « Louvain» da Universidade Católica de Lovaina,
em Louvain-la-Neuve,consagrou um dos seus números ao
« Couple et la famille».Entre os vários contributos sobressai,
sob muitos aspectos, a reflexão do Professor André Wénin,
Doutor em Ciências Bíblicas do Instituto Bíblico de Roma,
especializou-se em narratologia bíblica. Ensina Exegese e
Línguas Bíblicas na Faculdade de Teologia da U.C.L.
Foi com a maior amabilidade que o Senhor Professor Wénin
autorizou a tradução e publicação do seu estudo no nosso blog;
espero que os nossos leitores tenham a mesma alegria que eu tive,
ao lê-lo, ao traduzi-lo, e ao partilhá-lo convosco.

Fernando Moura


No mundo católico, a « Sagrada Família»,
a de Jesus, foi apresentada, desde sempre,
como a família modelo. No entanto, ela era
constituída por uma Virgem-mãe, um pai
putativo ( quer dizer, que era considerado
como tal, mas na realidade não era o verdadeiro
pai,) um filho único que, sendo solteiro,
abandonou a mãe, que era viúva, para ir pregar
pelos caminhos da Palestina…Estamos quase
nos antípodas do modelo de família proposto,
mais ou menos, explicitamente no mundo católico.
Este modelo, aliás, é com dificuldade que pode invocar
a Bíblia em seu favor. Mesmo o Novo Testamento não
nos propõe um definição uniforme e normativa.
Quanto ao primeiro testamento, as configurações
familiares que nele encontramos, são por vezes sur-
preendentes : poligamia, casamentos endógamos,
introdução de uma criada, que seria mãe-barriga-de-aluguer,



um casal estéril, mulheres repudiadas, conflitos
sangrentos entre irmãos, inimizades duradouras.
É que, na realidade, o Antigo Testamento não é
uma galeria de modelos de vida; ele é, sobretudo,
um livro no qual se reflecte a realidade humana,
como se fosse para convidar o leitor a uma reflexão.

Decisivo e o provisório

Nos costumes de Israel da Bíblia, não parece que
o casamento tivesse a chancela de um rito religioso.
É antes uma questão de família, de colectividade local.
No Antigo Testamento, se algo é sublimado na família é,
antes de mais, o amor que um homem e uma mulher
podem partilhar nesta instituição. Este amor inscreve-se
num contexto que faz com que os cônjuges não se
atraiçoem um ao outro, e que ambos, mas também
cada um individualmente, façam frente às dificuldades
da vida, e àquelas que são inerentes à vida do casal.
A este propósito, a história, por vezes caótica, de Abraão
e de Sara, é particularmente significativa, mas não é a única.
Este tipo de relação é-nos proposto desde o começo da
Génese como uma via de realização de cada ser
na sua singularidade : « o homem abandonará o seu pai
e a sua mãe e juntar- se -à à sua mulher, e eles
tornar-se-ão uma só carne» (2, 24)« Uma só carne »,
quer dizer o ser único, singular, na sua fragilidade e
vulnerabilidade, em que aceitamos de nos transformar
no seio de uma relação inédita e privilegiada, desde que
se respeite o direito à diferença entre um e o outro.
Celebrado no Cântico dos Cânticos, esse amor pode
ser apelidado de « conjugal», na medida em que ele
assume o desafio de conjugar duas singularidades
num plural original. Foi ele que serviu de imagem
aos profetas Osaías e Ezequiel, principalmente,
para evocarem o compromisso de Deus
com Israel e, de modo mais abrangente com a
humanidade; esta, a história da aliança, na qual Deus
exige ao seu parceiro humano uma fidelidade que
lhe é difícil de respeitar, mas na qual está em jogo
o seu futuro e a sua vida. Mas no projecto delineado



na Génese,(2, 24) está igualmente inscrita uma ruptura:
o homem abandona o pai e a mãe. A expressão é curiosa
num mundo em que era a mulher que abandonava os seus
para se unir ao clã do seu marido. Ela sublinha, sem dúvida,
que aquele que fica também abandona a sua família de
origem. Então, esta faz figura de base de partida, de lugar
de passagem, lugar e, sobretudo, laços provisórios que,
um dia ou outro, acabarão por se romper. Segundo este texto,
não se trata nem mais, nem menos da capacidade em se realizar
na sua singularidade como Abraão, ao qual Deus ordenou de
abandonar a casa paterna para viver com a sua esposa a sua
própria aventura. Um Abraão que, por seu lado, deverá deixar
partir os seus dois filhos, Ismael e Isaac, oferecer-lhes um espaço
onde cada um traçará o seu caminho.( Génese, 12 e 21-22).
Certos autores, aliás, sublinharam que esta ordem, -
«o homem deixará o seu pai e a sua mãe…» - foi feita
a propósito de Adão e Eva, dois personagens que, na narrativa,
não são nem filho nem filha, mas somente pai e mãe.
Como se fosse necessário advertir o pai e a mãe que
os seus filhos não lhes pertencem, e que eles devem colocar-se
ao serviço de uma autonomização que será sancionada
por uma ruptura, uma espécie de uma nova nascença.
Isto porque o seu futuro não está nos seus filhos, ou só está
na medida em que estes últimos se libertam dos pais
É que a Bíblia sabe que a família pode tornar-se uma prisão,
quiçá, dourada onde se esvai, ou é abafada, a vida
que aí nasceu. O ser humano, na verdade, foi concebido
para um horizonte mais vasto, para uma «outra família».
Não foi o que Jesus disse quando, « sua mãe e seus irmãos»
pensando que ele se tinha perdido, vieram à procura dele?
« Quem é minha mãe e meus irmãos?» disse ele ao designar
as pessoas que o rodeavam, dispostas a fazer a vontade
de Deus ( Marcos, 3,20-21). E Lucas afirma que,
desde os doze anos, Jesus deixou os seus pais para
« se ocupar das questões do Pai»( Lucas, 2,49) Mais tarde,
Jesus ordena a seus discípulos que deixem pai e mãe,
condição indispensável para seguirem aquele que os quer
livres de todos os entraves ao acesso ao Reino de Deus.
Esta exigência pode parecer chocante. No entanto,
ela está inscrita na lógica do texto -programa da Génese (2,-24)
Aliás, não é uma bela forma de « honrar pai e mãe »,



como a Lei prescreve, como a de os deixar, para exaltarem
a vida que eles lhe deram? Eis, a relação pais - filhos.
Quando ao casal, Jesus aprova e radicaliza a intuição da
Génese (2,24) quando ele incita com firmeza o homem
e a mulher a aceitarem o desafio da duração, da escolha
definitiva. ( Marcos, 10-1,2).Com efeito, para Ele, o repúdio
que Moisés permitiu é apenas uma tolerância à dureza do
coração – o coração, no sentido bíblico, é a sede da vontade,
muito mais que da afectividade, da decisão, como da inclinação.
Assim, ele sugere o que seria a fidelidade ao outro: trabalhar
o seu próprio coração para o tornar mais flexível, maleável,
na escuta e no respeito da individualidade do outro.
Uma submissão total, como afirmará a Epístola aos Efésios
(5,21). Ao fazer da palavra de Jesus uma lei jurídica, as Igrejas
não terão esquecido que ela é, antes de mais uma palavra profética,
uma incitação à seriedade do compromisso, um despertar da
aposta crucial da escolha da qual depende o futuro de duas pessoas?


Um Meio

Paulo, por seu lado, até pode surpreender. Com efeito,
ao escrever aos cristãos de Corinto a respeito da escolha
entre celibato e matrimónio, ele faz afirmações que
relativisam o matrimónio: « que aqueles que têm uma esposa,
sejam como se a não tivessem» Coríntios (7,29-35).
Não esqueçamos que no momento em que Paulo escreve,
ele pensa que o fim do mundo está iminente, e que é urgente
concentrar-se sobre o essencial. Mas não deixa de ser verdade
que neste contexto ele não considera o matrimónio
como fazendo parte do essencial. Ele dá prioridade à ordem
dos meios; é como um caminho em que enveredamos
para tentarmos viver aquilo que verdadeiramente conta:
o apego exclusivo a Nosso Senhor Jesus Cristo, àquele
em que o ser humano pode encontrar a liberdade e a
sua completa realização. Isto não quer dizer que S. Paulo
contradiz a exigência da fidelidade a Cristo, exigência à qual
se refere explicitamente. Mas esta fidelidade, não é, em si
mesma, um objectivo. Nos escritos mais tardios, observa-se
uma espécie de normalização do discurso. Ela corresponde,
sem dúvida, ao começo da institucionalização das




comunidades cristãs que têm que se organizar para
assegurarem um futuro. Então, a família dispõe de
um quadro: a mulher obedece ao marido que, por
seu lado, deve amá-la; quanto aos filhos, eles são
convidados a obedecer aos seus pais que, por sua vez,
não os podem empurrar para o desespero. (Efésios, 5,22-6,4)
Os escritos dos fins do 1º século endurecem as palavras.
Assim, a maternidade será apresentada como o que salva
a mulher, a primeira a transgredir, « com a condição de
que ela persevere na fé, no amor e na santidade, com modéstia »
1,Timóteo (2,14-15). É bem visível qual a foi a posteridade
destes textos, que estão tão distantes da palavra profética de Jesus…