quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Tentações de Cristo

*Alfa e Omega

AS TENTAÇÕES DE CRISTO

Não terão conta as vezes que já ouvimos, no cap. 4 do Evangelho de S. Mateus, o episódio chamado das “tentações de Cristo”. Vale a pena reflectir uma vez mais sobre ele, neste tempo de Quaresma, em que somos chamados à penitência.
As tentações acontecem no início da vida pública de Jesus. Ele saíra da casa de seus pais, autonomizara-se, e, após o Baptismo por João, deu a si próprio um período de reflexão – 40 dias no deserto. Este tempo de reflexão não é ousado dizer que Jesus o dedicou a pensar no rumo que queria dar à sua vida. Acontece na vida de todos os homens o tempo da escolha (pelo menos para aqueles que podem escolher), o tempo em que se escolhe a profissão e se elabora o projecto de vida.
O facto das tentações e o seu teor confirmam-me na convicção de que com Jesus se passou o mesmo. Não, não alinho com aqueles que vêem neste episódio o emergir em Jesus da consciência messiânica e da sua real filiação divina. Mas a função messiânica, a salvação do mundo – que é, no fim de contas o caminho para a felicidade do homem – podia orientar-se em várias direcções. São três os caminhos que o demónio propõe a Jesus e, note-se, pelo menos os dois primeiros supõem em Jesus uma identidade supra-humana.
“Se és o filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães” (Mt., 4, 3). Era a tentação da riqueza. Alguém que tivesse o poder de transformar pedras em pão facilmente enriqueceria. De bens transaccionáveis, nenhum se pode comparar ao pão em amplitude de nicho de mercado. Além disso, o homem que transformasse as pedras em pão não teria dificuldade em arregimentar legiões de seguidores. Que o seguiriam não por amor dele ou da sua mensagem, mas porque ele lhes garantia o bem estar que dá a abundância de bens materiais. Jesus recusou.
Vem depois a tentação da glória, da fama ou da notoriedade. Propunha o diabo a Jesus que se atirasse do alto do pináculo do templo, para que a multidão ali reunida, ao vê-lo aterrar em segurança, rodeasse com a sua admiração o autor do prodígio, que facilmente aceitaria como Filho de Deus. Jesus recusou.(Cf. Mt., 4, 7).
Finalmente o domínio sobre todos os reinos do mundo: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mt., 4, 9). Era a tentação do poder, aquela que merece de Jesus o repúdio mais veemente (Cf. Mt., 4, 10).
Penso que as tentações de Cristo são paradigmáticas dos valores que a vida nos propõe e perante os quais temos que nos definir, muito mais do que perante as tentações avulsas com que nos confrontamos no agir do dia a dia e nas quais decidimos normalmente em função das opções de fundo que fizemos.
Se olharmos bem, veremos que neste nosso mundo os valores dominantes são a riqueza, a glória e o poder, que muitas vezes se entrelaçam de modo que um se constitui caminho para o outro. Julgo que é nestes valores fundamentais que se encontra o pecado do mundo. Os males que depois emergem na sociedade, como casos de injustiça, como situações de miséria, como tragédias humanitárias não causadas por desastres naturais, têm como base escolhas individuais ou colectivas de algum daqueles contravalores – nomeadamente a riqueza e o poder. Aqueles que, rejeitando-os, Cristo desacreditou como caminhos de salvação. E, sinceramente, podemos dizer que vive feliz este nosso mundo em que eles imperam?
J. Tomaz Ferreira

*Alfa e Omega (assuntos religiosos)


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Um conto de Tolstoi - por Lauro Trevisan

Antologia

UM CONTO DE TOLSTOI
“Um aldeão russo, muito devoto, tinha pedido nas suas orações durante anos, que Jesus o viesse visitar uma Vaz só que fosse na sua humilde cabana.
uma noite, sonhou que o Senhor, no dia seguinte, havia de lhe aparecer; e tão certo ficou de que assim aconteceria que, logo que acordou, levantou-se imediatamente, entregando-se ao trabalho de pôr em ordem a cabana, para que nela pudesse ser recebido o hóspede celeste desejado. Apesar de uma violenta tempestade de granizo e neve, nem por isso o pobre aldeão abandonou os preparativos domésticos, cuidando também da sopa de couves, que era o seu prato predilecto, olhando de vez em quando para a estrada, sempre à espera da feliz ocasião, não obstante a tempestade continuar implacável.
Decorrido pouco tempo, o aldeão viu que caminhava pela estrada, em luta com a tempestade de neve que o cegava, um pobre vendedor ambulante que levava às costas um fardo bastante pesado. Compadecido, saiu de casa e foi ao encontro do vendedor. Levou-o para a sua cabana, pôs-lhe a roupa a secar ao fogo da lareira, repartiu com ele a sopa de couves e só o deixou ir embora, depois de ver que ele já tinha forças para continuar a jornada.
Olhando de novo através da janela, viu uma pobre mulher grávida, à procura do caminho na estrada coberta de neve. Foi buscá-la e abrigou-a também na cabana. Mandou-a aquecer ao lume benfazejo do lar, deu-lhe de comer, embrulhou-a na sua própria capa e não a deixou partir enquanto não tivesse readquirido forças suficientes para a caminhada.
A noite começava a cair e nada havia que pudesse anunciar a vinda de Jesus.
Já quase sem esperanças, o pobre aldeão abriu a porta ainda mais uma vez. E, estendendo os olhos pela estrada, distinguiu uma criança, percebeu que estava perdida no caminho por causa da neve que caía impetuosamente. Saiu mais uma vez, pegou na criança quase gelada, levou-a para a cabana, deu-lhe de comer e, não demorou muito, lá estava a criança adormecida ao calor da lareira.
Sensivelmente impressionado, o aldeão sentou-se e adormeceu também ao fogo da lareira. De repente, uma luz radiosa que não provinha do lume da lareira iluminou tudo! E, diante do pobre aldeão, surgiu risonho o Senhor, envolto numa túnica branca.
-Ah!, Senhor! Esperei todo o dia, e Vós sem aparecerdes – lamentou-se o aldeão.
E Jesus respondeu:
- Já por três vezes, hoje, visitei a tua cabana: o pobre vendedor ambulante, a quem socorreste, aqueceste e deste de comer, era eu; a pobre mulher, a quem deste a tua capa, era eu; e esta criança, a quem salvaste da tempestade, também era eu… O bem que fizeste a cada um deles, a mim o fizeste!”
(In Lauro Trevisan, CONHECE-TE E CONHECERÁS O TEU PODER,
PAGS. 91-92 - Com a devida vénia)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

As Dimensões da Catolicidade

*Alfa e Omega

AS DIMENSÕES DA CATOLICIDADE

Sempre que participamos na Missa, confessamos a nossa Fé na Igreja. E adjectivamo-la: una, santa, católica e apostólica. São características que damos por adquiridas e que o são na sua raiz, mas que nem por isso deixam de ser também dinâmicas, e que podem e devem ser aprofundadas segundo o desejo do Senhor: quanto mais crescerem em santidade os membros do Povo de Deus, com mais propriedade se pode aplicar à Igreja a designação de santa.
Em escrito anterior tivemos oportunidade de aflorar a catolicidade que, na ocasião, reduzimos à dimensão quantitativa: a Igreja é católica porque universal no tempo e no espaço. Universal no tempo, porque tem atravessado os séculos – já lá vão vinte – sem dar mostras de cansaço, e preservando, através de todas as vicissitudes, o essencial das suas características: a Igreja de que hoje fazemos parte é essencialmente idêntica à pequena comunidade que se formou em Jerusalém na sequência do Pentecostes. E vai continuar até ao fim dos tempos: é essa a nossa fé e a nossa esperança, baseados na promessa do Senhor Jesus: “As portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt., 16, 18), e “Eu estarei convosco todos os dias até à consumação dos séculos” (Mt., 28, 20).
É universal no espaço, aberta a todos os homens sem distinção de raça ou de cultura. Tendo começado por se dirigir apenas aos Judeus, em breve, por intervenção do Espírito Santo, se abriu aos gentios, e a Boa Nova foi anunciada em todo o mundo conhecido a ponto de a sua importância em número de sequazes ter levado o Imperador Constantino a fazer ela seu aliado em gesto político destinado a preservar a unidade do Império. Mais tarde, quando nós, Portugueses, alargámos com os descobrimentos as fronteiras do mundo, nova oportunidade se abriu ao impulso da catolicidade. Goste-se ou não, é historicamente inegável que, na gesta dos descobrimentos, a cruz andou de par com a espada – seja qual for o juízo sobre o papel desta na imposição daquela.
Mas a catolicidade tem também, para além desta dimensão quantitativa. Um aspecto qualitativo, demasiadas vezes esquecido, tanto que quase se não dá por ele.
Em palavras simples, poderíamos dizer que, por força da catolicidade, a Igreja é chamada a acolher no seu seio não apenas todos os homens, mas o homem todo.
É que a Igreja é a continuação no tempo da Redenção de Cristo. E a Redenção de Cristo tem uma dimensão universal, podemos mesmo dizer, uma dimensão cósmica. Então, é o homem todo que Ele redime. A catolicidade da Igreja é ou de ser a tradução no tempo presente da catolicidade da Redenção de Cristo. Como escreveu o P. Congar: “Cristo foi constituído por Deus princípio duma nova existência para todas as coisas, tem em Si o que é preciso para salvar, transfigurar e reconduzir a Deus (…) a totalidade do que há de humano no homem, a totalidade das virtualidades da natureza humana”. E nesta totalidade se incluem uma infinidade de línguas, de culturas, de situações ou de condições, se experiências espirituais e de maneiras de abordar a realidade.
E é aqui que começam as minhas dúvidas. A Igreja tem evangelizado povos muito diversos. Mas, ao impor-lhes uma disciplina forjada na Europa, uma liturgia de raiz romana, uma teologia (i. é. não uma Fé, mas uma inteligência da Fé) elaborada na base de conceitos greco-latinos, estará a cumprir a catolicidade que exige a Redenção do homem todo? Será que a preocupação legítima da unidade na Fé não se transformou na indefensável exigência duma monocórdica unicidade de disciplina, de expressão da espiritualidade, de pensamento da Fé?
Queixam-se os católicos de rito oriental de que as suas diferenças em relação à Igreja latina são mais toleradas do que acarinhadas. E não consta que nas Africas, nas Índias e nos Brasis as comunidades tenham feito mais do que adaptar-se à latinização imposta, em vez de, na unidade da Fé, terem segregado uma vivência eclesial que exprima o que há de diferente no seu ser homem.
Para quando evangelizar apenas e não latinizar ou romanizar também? Para quando a plena dimensão da catolicidade da Igreja?
*Alfa e Omega (assuntos religiosos)
J. Tomaz Ferreira

Onde Anda o Sentido da Obra de Santa Zita?

ONDE ANDA O SENTIDO DA OBRA de Santa Zita?

Quando frequentei o Seminário do Fundão, nos anos 41/45 do século passado, a figura do padre Brás era por assim dizer familiar; não fazia parte do corpo docente, mas não raro ali
se deslocava seja para confessar, seja para pregar retiros. Era coxo, e essa deficiência notava-se tanto mais quanto a sua estatura não passava despercebida. Pelas suas palavras, e pela sua atitude víamos que era um homem de uma fé profunda, mas que não podia de forma alguma, bem pelo contrário, ser considerad o como «um beato».
Nesses tempos em que a Europa estava a sair, estremunhada, de uma guerra que matou « SÓ» 50 milhões de europeus, os portugueses – a essa guerra escapámos – consideravam-se, em
geral, protegidos por Deus, pois fomos poupados aos horro-res que os que têm menos de 40 anos têm dificuldade em imaginar. Monsenhor Alves Brás tinha, certamente, uma visão di-
ferente da do comum dos portugueses, e muito mais distante ainda, da dos alunos do Seminário do Fundão.
Enquanto ele vinha ali dar-nos um testemunho de fé do qual não podíamos medir o alcance, ele consagrava o melhor de si mesmo a uma obra que lhe ia absorver a vida inteira, e o colocava na senda da beatificação. Sim, um jovem nascido numa pequena aldeia da Beira Baixa – em Casegas - sentiu-se
chamado por Deus para aceder ao sacerdócio. Cometeu o erro de expressar este seu pensamento, e « o fariseu de ser-viço» ditou logo a sua sentença: « não pode entrar no semi-nário porque é coxo!» De opinião inversa foi Monsenhor António dos Santos Carreto – o grande fundador dos Seminá-rios do Fundão e da Guarda – e que o acolheu como deve ser acolhido todo aquele que deseja consagrar a sua vida a Deus.
Para nós, seminaristas, Mons. Alves Brás era um grande prégador de retiros, ponto final. Falar da obra de Santa Zita, que jeito é que isso tinha? « Uma coisa não tem nada a ver com a outra» responder-nos-iam, se ousássemos fazer tal pergunta.
O Padre Brás, como assim o chamávamos, fundara uma obra social de protecção às « criadas». A palavra « criada» que, originariamente nada tinha de depreciativo – designava-se assim uma menina de uma família pobre que era recebida numa « família rica » e era criada, simultaneamente, com os filhos da casa. Em troca, ela prestava pequenos serviços, como era na-
tural, e pedagógico. Como acontece, frequentemente, a troca de serviços abafou o sentimento de humanismo da primitiva ideia, e « uma criada de servir » passou a ser, e era nos anos 50 uma pequena provinciana que vinha trabalhar, sobretudo para Lisboa, mas também para outros meios urbanos, recebendo um salário miserável, trabalhando 10/12horas por dia e, sendo tantas vezes laboratório sexual dos machos da casa, quer dizer, não só dos coetâneos mas até dos donos.
Esta desgraça não passou despercebida ao sacerdote que nasceu em Casegas, e à rua para onde « o sistema » encaminhava não só as que engravidavam, mas certamente muitas outras, ele opunha, oferecia uma casa onde não só tinha um abrigo mas, tanto ou mais importante do que isso, um respeito, uma consideração que nunca ninguém lhes consagrara. E a Obra de Santa Zita cresceu porque o número das que nela encon-travam o seu verdadeiro lar cresceu; nunca se recusou nem um prato de sopa, nem uma cama a ninguém.
E eu agora pergunto: porque é que há agora crianças a morrerem antes ou depois de nascerem, torturadas sob as formas mais selvagens? Não será porque ignoram que há uma obra que foi fundada para que uma mãe nunca tivesse vergonha de o ser? Então?
Fernando Moura

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Fátima - Basílica da Santissima Trindade

*Agora
Não gosto de lugares grandes para me encontrar com Deus naquele simples trato de amizade de que tanto falou Santa Teresa D'Ávila.
A nova Basílica em Fátima é um lugar tão grande que asfixiou a possibilidade de um diálogo mais prolongado a sós com Jesus. Por isso, detive-me na obra de arquitectura, que obriga à admiração, nomeadamente da cruz alta, uma verdadeira peça da estética moderna, e no desejo profundo de que aquele espaço se torne um lugar cimeiro de encontro comunitário.
Ana Paula Lemos

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

A Sagrada Familia

A SAGRADA FAMILIA


André Wénin


A revista « Louvain» da Universidade Católica de Lovaina,
em Louvain-la-Neuve,consagrou um dos seus números ao
« Couple et la famille».Entre os vários contributos sobressai,
sob muitos aspectos, a reflexão do Professor André Wénin,
Doutor em Ciências Bíblicas do Instituto Bíblico de Roma,
especializou-se em narratologia bíblica. Ensina Exegese e
Línguas Bíblicas na Faculdade de Teologia da U.C.L.
Foi com a maior amabilidade que o Senhor Professor Wénin
autorizou a tradução e publicação do seu estudo no nosso blog;
espero que os nossos leitores tenham a mesma alegria que eu tive,
ao lê-lo, ao traduzi-lo, e ao partilhá-lo convosco.

Fernando Moura


No mundo católico, a « Sagrada Família»,
a de Jesus, foi apresentada, desde sempre,
como a família modelo. No entanto, ela era
constituída por uma Virgem-mãe, um pai
putativo ( quer dizer, que era considerado
como tal, mas na realidade não era o verdadeiro
pai,) um filho único que, sendo solteiro,
abandonou a mãe, que era viúva, para ir pregar
pelos caminhos da Palestina…Estamos quase
nos antípodas do modelo de família proposto,
mais ou menos, explicitamente no mundo católico.
Este modelo, aliás, é com dificuldade que pode invocar
a Bíblia em seu favor. Mesmo o Novo Testamento não
nos propõe um definição uniforme e normativa.
Quanto ao primeiro testamento, as configurações
familiares que nele encontramos, são por vezes sur-
preendentes : poligamia, casamentos endógamos,
introdução de uma criada, que seria mãe-barriga-de-aluguer,



um casal estéril, mulheres repudiadas, conflitos
sangrentos entre irmãos, inimizades duradouras.
É que, na realidade, o Antigo Testamento não é
uma galeria de modelos de vida; ele é, sobretudo,
um livro no qual se reflecte a realidade humana,
como se fosse para convidar o leitor a uma reflexão.

Decisivo e o provisório

Nos costumes de Israel da Bíblia, não parece que
o casamento tivesse a chancela de um rito religioso.
É antes uma questão de família, de colectividade local.
No Antigo Testamento, se algo é sublimado na família é,
antes de mais, o amor que um homem e uma mulher
podem partilhar nesta instituição. Este amor inscreve-se
num contexto que faz com que os cônjuges não se
atraiçoem um ao outro, e que ambos, mas também
cada um individualmente, façam frente às dificuldades
da vida, e àquelas que são inerentes à vida do casal.
A este propósito, a história, por vezes caótica, de Abraão
e de Sara, é particularmente significativa, mas não é a única.
Este tipo de relação é-nos proposto desde o começo da
Génese como uma via de realização de cada ser
na sua singularidade : « o homem abandonará o seu pai
e a sua mãe e juntar- se -à à sua mulher, e eles
tornar-se-ão uma só carne» (2, 24)« Uma só carne »,
quer dizer o ser único, singular, na sua fragilidade e
vulnerabilidade, em que aceitamos de nos transformar
no seio de uma relação inédita e privilegiada, desde que
se respeite o direito à diferença entre um e o outro.
Celebrado no Cântico dos Cânticos, esse amor pode
ser apelidado de « conjugal», na medida em que ele
assume o desafio de conjugar duas singularidades
num plural original. Foi ele que serviu de imagem
aos profetas Osaías e Ezequiel, principalmente,
para evocarem o compromisso de Deus
com Israel e, de modo mais abrangente com a
humanidade; esta, a história da aliança, na qual Deus
exige ao seu parceiro humano uma fidelidade que
lhe é difícil de respeitar, mas na qual está em jogo
o seu futuro e a sua vida. Mas no projecto delineado



na Génese,(2, 24) está igualmente inscrita uma ruptura:
o homem abandona o pai e a mãe. A expressão é curiosa
num mundo em que era a mulher que abandonava os seus
para se unir ao clã do seu marido. Ela sublinha, sem dúvida,
que aquele que fica também abandona a sua família de
origem. Então, esta faz figura de base de partida, de lugar
de passagem, lugar e, sobretudo, laços provisórios que,
um dia ou outro, acabarão por se romper. Segundo este texto,
não se trata nem mais, nem menos da capacidade em se realizar
na sua singularidade como Abraão, ao qual Deus ordenou de
abandonar a casa paterna para viver com a sua esposa a sua
própria aventura. Um Abraão que, por seu lado, deverá deixar
partir os seus dois filhos, Ismael e Isaac, oferecer-lhes um espaço
onde cada um traçará o seu caminho.( Génese, 12 e 21-22).
Certos autores, aliás, sublinharam que esta ordem, -
«o homem deixará o seu pai e a sua mãe…» - foi feita
a propósito de Adão e Eva, dois personagens que, na narrativa,
não são nem filho nem filha, mas somente pai e mãe.
Como se fosse necessário advertir o pai e a mãe que
os seus filhos não lhes pertencem, e que eles devem colocar-se
ao serviço de uma autonomização que será sancionada
por uma ruptura, uma espécie de uma nova nascença.
Isto porque o seu futuro não está nos seus filhos, ou só está
na medida em que estes últimos se libertam dos pais
É que a Bíblia sabe que a família pode tornar-se uma prisão,
quiçá, dourada onde se esvai, ou é abafada, a vida
que aí nasceu. O ser humano, na verdade, foi concebido
para um horizonte mais vasto, para uma «outra família».
Não foi o que Jesus disse quando, « sua mãe e seus irmãos»
pensando que ele se tinha perdido, vieram à procura dele?
« Quem é minha mãe e meus irmãos?» disse ele ao designar
as pessoas que o rodeavam, dispostas a fazer a vontade
de Deus ( Marcos, 3,20-21). E Lucas afirma que,
desde os doze anos, Jesus deixou os seus pais para
« se ocupar das questões do Pai»( Lucas, 2,49) Mais tarde,
Jesus ordena a seus discípulos que deixem pai e mãe,
condição indispensável para seguirem aquele que os quer
livres de todos os entraves ao acesso ao Reino de Deus.
Esta exigência pode parecer chocante. No entanto,
ela está inscrita na lógica do texto -programa da Génese (2,-24)
Aliás, não é uma bela forma de « honrar pai e mãe »,



como a Lei prescreve, como a de os deixar, para exaltarem
a vida que eles lhe deram? Eis, a relação pais - filhos.
Quando ao casal, Jesus aprova e radicaliza a intuição da
Génese (2,24) quando ele incita com firmeza o homem
e a mulher a aceitarem o desafio da duração, da escolha
definitiva. ( Marcos, 10-1,2).Com efeito, para Ele, o repúdio
que Moisés permitiu é apenas uma tolerância à dureza do
coração – o coração, no sentido bíblico, é a sede da vontade,
muito mais que da afectividade, da decisão, como da inclinação.
Assim, ele sugere o que seria a fidelidade ao outro: trabalhar
o seu próprio coração para o tornar mais flexível, maleável,
na escuta e no respeito da individualidade do outro.
Uma submissão total, como afirmará a Epístola aos Efésios
(5,21). Ao fazer da palavra de Jesus uma lei jurídica, as Igrejas
não terão esquecido que ela é, antes de mais uma palavra profética,
uma incitação à seriedade do compromisso, um despertar da
aposta crucial da escolha da qual depende o futuro de duas pessoas?


Um Meio

Paulo, por seu lado, até pode surpreender. Com efeito,
ao escrever aos cristãos de Corinto a respeito da escolha
entre celibato e matrimónio, ele faz afirmações que
relativisam o matrimónio: « que aqueles que têm uma esposa,
sejam como se a não tivessem» Coríntios (7,29-35).
Não esqueçamos que no momento em que Paulo escreve,
ele pensa que o fim do mundo está iminente, e que é urgente
concentrar-se sobre o essencial. Mas não deixa de ser verdade
que neste contexto ele não considera o matrimónio
como fazendo parte do essencial. Ele dá prioridade à ordem
dos meios; é como um caminho em que enveredamos
para tentarmos viver aquilo que verdadeiramente conta:
o apego exclusivo a Nosso Senhor Jesus Cristo, àquele
em que o ser humano pode encontrar a liberdade e a
sua completa realização. Isto não quer dizer que S. Paulo
contradiz a exigência da fidelidade a Cristo, exigência à qual
se refere explicitamente. Mas esta fidelidade, não é, em si
mesma, um objectivo. Nos escritos mais tardios, observa-se
uma espécie de normalização do discurso. Ela corresponde,
sem dúvida, ao começo da institucionalização das




comunidades cristãs que têm que se organizar para
assegurarem um futuro. Então, a família dispõe de
um quadro: a mulher obedece ao marido que, por
seu lado, deve amá-la; quanto aos filhos, eles são
convidados a obedecer aos seus pais que, por sua vez,
não os podem empurrar para o desespero. (Efésios, 5,22-6,4)
Os escritos dos fins do 1º século endurecem as palavras.
Assim, a maternidade será apresentada como o que salva
a mulher, a primeira a transgredir, « com a condição de
que ela persevere na fé, no amor e na santidade, com modéstia »
1,Timóteo (2,14-15). É bem visível qual a foi a posteridade
destes textos, que estão tão distantes da palavra profética de Jesus…








domingo, 10 de fevereiro de 2008

Tempo

*antologia


Tempo


Deus nos pede do tempo estreita conta,
É forçoso dar conta a Deus, do tempo,
Mas como dar sem tempo tanta conta,
Se se perde sem conta tanto tempo?

Para fazer a tempo a minha conta,
dado me foi por conta muito tempo.
Mas não cuidei do tempo e foi-se a conta,
Eis-me agora sem conta, eis-me sem tempo.

Ó Vós que tendes tempo, tende conta,
Não o gasteis sem conta em passatempo,
Cuidai enquanto é tempo em terdes conta.

Ah! Se quem isto conta do seu tempo,
Tivesse feito a tempo a sua conta,
Não chorava sem conta, o não ter tempo.

Frei Castelo Branco

Estruturas do Pecado

*Agora

ESTRUTURAS DE PECADO

Foi Emmanuel Mounier quem primeiro falou da desordem estabelecida e contra ela lutou ao insurgir-se contra a chamada ordem estabelecida.
Como no seu tempo, a chamada “ordem estabelecida” é muitas vezes a capa social e politicamente aceite daquilo que, em tantos casos, mais não é do que uma verdadeira “desordem estabelecida”.
Os exemplos abundam, nem é nosso propósito enumerá-los. Mas alguns se podem apontar e sobre eles devemos reflectir e contra eles travar o combate que impõe o exercício da cidadania.
Recentemente, o Presidente da República dizia interrogar-se sobre o desnível entre a remuneração de certos gestores e a média salarial dos trabalhadores das suas empresas. Podemos interrogar-nos também sobre as reformas milionárias de que gozam reformados de idade não propriamente provecta, que aliás continuam (e muito bem) profissionalmente activos, quando comparadas com a miséria dos 300 euros que é propósito do Governo atribuir como mínimo a tantos reformados condenados a viver aquém desse limiar de miséria. São situações que decorrem da lei ou que a lei, se não cria, permite. Mas são com certeza, e por isso mesmo, manifestações duma “desordem estabelecida”, fruto das estruturas de pecado que dominam o sistema.
Todos os cidadãos, e com maioria de razão os que se reclamam do cristianismo, têm obrigação de se empenhar na luta contra a pobreza e na construção duma sociedade mais justa e mais humana. Ora, a luta contra a pobreza não pode fazer-se hoje apenas “dando” a quem precisa – essa é a função supletiva. Na primeira linha desse combate está a construção duma ordem social em que todos possam ver garantida realmente uma vida condizente com a dignidade humana. E que seja só por demérito próprio que alguns se vejam excluídos desse direito.
Mas uma ordem social justa nunca poderá ser construída enquanto grassar a corrupção, enquanto o tráfico de influências determinar a concessão a um como favor, daquilo que seria direito de outros; enquanto o legítimo exercício de cargos e lugares for ocasião para obter proventos indevidos geradores do enriquecimento sem justa causa.
Há quem remeta para os tribunais a cura destes males. Ora, os tribunais – mesmo quando funcionam – limitam-se a remediar. E aqui o que é preciso e possível é prevenir. Urge desmantelar as estruturas de pecado que propiciam estes desvios.
O tema tem sido debatido. Mas será que as elites dominantes têm real vontade de resolver o problema?
Citizen Kane
*Agora (para assuntos de sociedade e cidadania, cultura….

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Bem - Aventurados...

Antologia

BEM -AVENTURADOS…

…aqueles que têm um coração de pobre,
porque o Reino de Deus é sua riqueza.

…aqueles que choram lágrimas de dor,
porque o carinho de Deus enxugará os seus olhos.

…aqueles que receberam o dom da mansidão,
porque não guardam no peito sementes de violência.

…aqueles que têm fome e sede de justiça,
porque a justiça de Deus os há-de saciar.

…aqueles que sabem perdoar como Deus perdoa,
porque têm certo para si o perdão de Deus.

…aqueles que têm limpo o coração,
porque vêem o mundo com os olhos de Deus.

…aqueles que à sua volta sabem semear a paz,
porque fazem na Terra o trabalho de Deus.

…aqueles que o mundo persegue por causa da justiça,
porque sobre o mundo triunfarão na luz de Deus.

Paráfrase das Bem-aventuranças

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

*Antologia

O PAPA E O PODER DAS CHAVES

Afinal, não foi só um homem que recebeu essas chaves, mas a Igreja na sua unidade. Então, é esse o motivo da preeminência reconhecida de Pedro: ele representava a universalidade e a unidade da Igreja quando lhe foi dito Confio-te, o que na verdade foi confiado a todos. Desejo demonstrar que foi a Igreja que recebeu as chaves do Reino dos Céus. Ouçam o que o Senhor diz a todos os Apóstolos em outra passagem: Recebei o Espírito Santo; e imediatamente: Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; aqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos. (Jo. 20, 22-23) Isso refere-se às chaves, das quais é dito: Tudo o que ligares na Terra será ligado no Céu (Mt., 16, 19) Mas isso foi dito a Pedro… Na ocasião, Pedro representava a Igreja universal.
Santo Agostinho, Sermão 295 ,
Na festa do martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Porque morreu Jesus? - Parte I

*Alfa e Ómega

POR QUE MORREU JESUS

Sobre a morte de Jesus fala-se muito, e não só entre os cristãos. O Processo de Jesus já foi tema de peça de teatro célebre que Diego Fabbri escreveu e que os palcos de todo o mundo viram representada.
Para os cristãos, a morte de Jesus é, acima de tudo, o Sacrifício da Nova Aliança, que se repete todas as vezes que a assembleia cristã se reúne para celebrar a Eucaristia, seguindo a ordem do Senhor: Fazei isto em memória de Mim (Lc., 22, 19). E, ao celebrar a Eucaristia, a comunidade dos crentes está a anunciar a morte do Senhor, até que Ele volte (Cf. 1Cor., 11, 26). Sabido como em todas as religiões o sacrifício é o acto supremo de culto, têm razão os cristãos que vêem na Eucaristia o ponto mais alto do culto que prestam a Deus.
Identificada como acto sacrificial, a morte de Cristo – morte cruenta e dolorosa como evidentemente foi – é o preço do nosso resgate, o acto que nos libertou do poder da morte para a graça da vida que não tem fim, o acto que nos libertou das grilhetas do pecado e nos restituiu a liberdade dos Filhos de Deus, fazendo dos crentes um povo de reis.
Mas, baixando um pouco mais ao nível das realidades meramente terrestres, podemos também fixar os nossos olhos no facto histórico da morte de Jesus e, em termos humanos, analisá-lo, para vermos em que consistiu, e como foi que um homem que não consta que tivesse feito mal a ninguém – pelo contrário, passou fazendo o bem e curando a todos, segundo o testemunho de S. Pedro (cf., Act. 10, 38) – acabou condenado à morte no tribunal do Sinédrio judaico.
Em primeiro lugar, há que notar que o comportamento de Jesus face à sociedade do seu tempo foi efectivamente provocador. Num país e num povo cuja vida girava por inteiro à volta da religião, Jesus apresentou-se como um pregador. Ora, a mensagem que ele transmitia ia ao arrepio do que diziam e ensinavam os sábios arvorados em guias do povo – os escribas, doutores da Lei – e do que praticavam os membros das seitas mais conceituadas, nomeadamente os fariseus. Comum a todos era o apregoado culto da Lei de Deus. Só que, com base nos 10 Mandamentos, tinham arquitectado um emaranhado gigantesco de pequenas e grandes obrigações que somavam largas centenas de preceitos. Era o ritualismo seco em todo o seu esplendor, um ritualismo de que estava ausente o amor de Deus e do próximo – o preceito a que, interrogado, reduziu Jesus tada a Lei e os Profetas (cf., Mt., 22, 40). O capítulo 23 de S. Mateus reúne os mimos com que Jesus não se inibiu de qualificar doutores da Lei e fariseus. Hipócritas, raça de víboras, sepulcros branqueados, foram alguns dos atributos com que Jesus os mimoseou
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J.Tomaz Ferreira
*Alfa e Ómega ( assuntos religiosos)

Porque morreu Jesus? - Parte II

Como é evidente, esta linguagem e a mensagem que transmitia não podia deixar de irritar os visados, e a prática da religião segundo os parâmetros definidos por Jesus punha claramente em causa o que podemos chamar de establishment do tempo. De resto, os evangelhos estão cheios de episódios em que Jesus discute asperamente com os seus opositores, e de outros em que eles claramente tentaram armadilhas que lhes permitissem apanhar Jesus em falso para o poderem acusar. Lembremos, só a título de exemplo, o caso da mulher adúltera (cf., Jo. 8, 1-11). Nestes duelos verbais a vitória inclina-se sempre para o lado de Jesus que em todos eles evidencia uma serenidade, uma argúcia, uma presença de espírito que dizem bem das suas qualidades de inteligência. Tudo se enquadrava numa estratégia de descrédito da pessoa. Falhada esta, havia que procurar a sua destruição. E é o que acontece.
Jesus acaba por ser preso no Jardim de Getsemani pela calada da noite na quinta feira antes da Páscoa à ordem da autoridade religiosa do povo de Israel (então dominado politicamente pelo poder romano). É levado a tribunal – o Sinédrio – e aí é condenado à morte. Justa ou injusta, a sua condenação?
A simples pergunta ofende a sensibilidade cristã. No entanto, ela é legítima e a resposta só pode ser dada após analisadas as actas do processo em que os três evangelistas sinópticos concordam.
O julgamento começa com a audição das testemunhas – que pouco ou nada adiantam para o objectivo pretendido, que era a condenação à morte. O mais grave que lhe imputam é o ter dito que, se destruíssem o templo, ele podia reconstruí-lo em três dias.
Compreende-se a frustração do Sumo Sacerdote que, impaciente, resolve interrogar o réu no intuito de obter uma confissão. E pergunta: És tu o Messias, o Filho do Deus bendito? Jesus respondeu: Eu sou. (Mc., 14, 61; cf. Mt., 26, 65-66; Lc., 14, 61-64) Ouvido isto O Sumo Sacerdote rasgou as suas vestes e disse: Que necessidade temos ainda de testemunhas? Ouvistes a blasfémia! Que vos parece? E todos sentenciavam que ele era réu de morte (Mc., loc. cit.).
Efectivamente, Jesus tinha blasfemado ao afirmar claramente que era o Filho de Deus. Se a blasfémia consiste em atribuir à criatura os atributos do Criador, blasfémia maior não se pode imaginar do que aquela que Jesus tinha proferido. Ora, no ordenamento jurídico judaico, ao crime de blasfémia correspondia a pena de morte. Compreende-se a unanimidade do Sinédrio, que aplicava com justiça a pena merecida por um réu confesso de um crime de morte. Donde se conclui que foi justa a condenação de Jesus.
A justeza desta conclusão só pode ser infirmada se no processo introduzirmos o elemento FÉ. A sentença só é, de facto, injusta, porque, na realidade, Jesus era o Filho de Deus.
Assim, à pergunta por que morreu Jesus a resposta certa é porque não acreditou na sua palavra o povo a quem fora enviado.


J. Tomaz Ferreira

Ao princípio...

*Alfa e Ómega
Ao princípio, Jesus parecia ser um homem como qualquer outro, imediato, próximo e conhecido. (...) Ao mesmo tempo é um homem que vem de outro sítio, de outra linhagem, de parte alguma (...) pode dizer-se que a sua origem é o Silêncio ou o deserto, pois parece não ter raízes, tão desconcertante é a sua proposta de adoptar um novo estilo de vida, inovador, desprendido, livre, pobre, sem ter onde reclinar a cabeça. Passou por essa experiência que a maioria dos homens teme terrivelmente: foi posto diante do seu próprio problema, sem reservas, quando, no deserto das tentações deixou de lado o poder para desconcertar os homens ao falar-lhes de um incondicional e desinteressado amor, até aos inimigos, aceitando apenas o milagre supremo de tudo reduzir à fraternidade, ao perdão, à tolerância, à magnanimidade.(...) Não ignora que os humanos, quando se empequenecem, necessariamente se convencem que só serão importantes colocando os outros, incluindo o próprio Deus, sob os seus pés para se persuadirem que são grandes. É um intranquilizador, mas seus amigos não se aperceberam logo disto mesmo. (...) Tão infinitamente humano e desarmado se apresentou perante os amigos e contemporâneos que estes não conseguiram encontrá-lo. Mas em dada altura, alguns deles chegaram ao conhecimento deles próprios, e encontraram-no, descobrindo-O através da palavra, da partilha do pão...(...) Quando deram por isso , Ele já estava distante, como que desaparecido, pois obrigava-os a ir mais fundo e a buscar um sentido para a vida onde eles não imaginavam que estivesse (Jo 8, 21-59)
João da Silva Gama
*Alfa e Ómega (assuntos religiosos)
O curso de pianista


Era uma vez…dois meninos que se conheceram e tornaram amigos nos primeiros tempos do liceu, mantiveram e consolidaram esse sentimento à medida que progrediam nos estudos de direito da Universidade de Milão,
e refinaram-no, certamente, no conservatório onde se matricularam, no mesmo dia em que ingressavam na Universidade. No entanto, o canudo que tinham na mão, não era chave para um bom emprego, e muito menos para abrir banca de advogados. E como Confalonieri era bom pianista e Berlusconi bom cantor, deixaram-se seduzir pelas ondas e outros encantos mediterrâneos; foi assim, que este duo fez dançar turistas de todas as origens e condições nos inumeráveis cruzeiros mediterrâneos, seus principais animadores. Entretanto, como que distraidamente, puseram a funcionar uma estação televisiva numa garagem
milanesa.
Enquanto o nome de Berlusconi começou a aparecer nas páginas dos jornais há mais de uma dúzia de anos – primeiro, graças ao futebol, depois, com o crescimento e multiplicação das actividades televisivas,- o amigo Fedele segue-o sempre, excepto quando il cavaliere cria sobre as ruínas da democracia cristã um novo partido político, e daí a primeiro ministro foi um salto. Sem a colaboração de Confalonieri, Berlusconi nunca poderia erguer um império televisivo que, com três cadeias, faz uma acesa concorrência à RAI, a televisão do estado. Presidente da Associação das televisões italianas, presidente da Orquestra do Scala de Milão, de Mondadori – o maior editor italiano - e do diário, Il Giornale, Fedele tem as paredes do escritório atapetadas de diplomas « doctor honoris causa » de não sei quantas universidades.
Apesar desta vida bem preenchida, Fedele, aos setenta anos, ainda não conse-guira calar o bichinho que, desde menino, lhe roía a cabeça: não tinha termi-nado o curso de conservatório que interrompera em 1958, com a elevada clas-
ficação de 8,25/10. Tinha, tinha que terminar o curso ou quem era ele? E em
vez de ir sentar-se na cadeira de presidente da Câmara de Milão, arranjou um
professor de piano, e pôs-se a estudar à noite, sábados e domingos e durante
todo o passado verão. Quando chegou o outono, com pouco mais de setenta anos, o Dr. Fedele Confalonieri deliciou os seus examinadores do Conserva-tório de Milão com a Appasionata de Beethoven, a Fantasia em dó de Schumann, e a Rapsódia de Brahms. Certamente, só agora Fedele é um homem completa-mente feliz; teve tudo: dinheiro, honras, poder, etc…faltava-lhe a realização de um sonho… um sonho lindo! Parabéns, Dr. Fedele! Como deve ter sido enaltecedor ter trabalhado consigo! Não está nos altares, mas o seu retrato fica bem nas escolas, nas oficinas, e nos escritórios de qualquer país que mereça o título de civilizado. E não será um exemplo da parábola do Evangelho, sobre os três talentos?
f.moura