sábado, 19 de janeiro de 2008

*Agora

A EUROPA E O REFERENDO

Estou muito grato ao Engenheiro Sócrates por, com o despudor que se lhe reconhece, ter deitado às urtigas o referendo que prometeu sobre o novo Tratado da União Europeia. Estou-lhe grato porque, quando daqui a uns tempos, o povo se aperceber do que eles combinaram, e a coisa der para o torto, os iluminados da Europa a grande velocidade não poderão invocar a vontade do povo, porque o pobre povo “aos costumes disse nada”.
Vamos a ver se nos entendemos.
Apregoa-se que há um amplo consenso nacional à volta do projecto europeu. Sob a aparência de verdade, e afirmação é, no mínimo, falaciosa – e por uma razão muito simples: alguém do povo sabe qual é o projecto europeu que se perfila nas anfractuosidades do Tratado? Porque projectos europeus pode haver vários.
Por exemplo, no projecto europeu dos pais fundadores (e eles sonhavam com a Europa) havia um princípio intocável: o da igualdade entre todos os Estados. Isso fazia, por exemplo, que a voz do minúsculo Luxemburgo tivesse força igual à da poderosa Alemanha. Intuíram eles, e muito bem, que só por esta via se podia manter a coesão.
Sabe-se que no tratado actual os Estados estão divididos em categorias, penso que de acordo com o seu peso demográfico: há estados de primeira, de segunda e de terceira classe. A tomada de decisões faz-se por maioria, e não, como era antes, por unanimidade. O que, evidentemente, deixa os interesses dos pequenos à mercê da boa vontade dos grandes. Sabe-se que, em política, não há amizades: a política externa de cada país define-se em função dos respectivos interesses.
E aqui chegámos a um dos pontos essenciais. De acordo com o novo Tratado, a Europa passa a ter uma política externa comum, servida por um Ministro dos Negócios Estrangeiros comum. Ora isto é ignorar que na Europa actual coexistem 27 Estados, alguns multisseculares, em que a História plasmou identidades diferentes com os consequentes interesses divergentes que tentam prosseguir ao nível internacional com as políticas externas adequadas. Haverá uma política externa comum que consiga congraçar, servindo-os, os interesses de 27 Estados?
É evidente que não, e o expectável na primeira curva de dificuldades é que o Tratado seja mandado às urtigas (como o foi o referendo…) e os Estados europeus, em lugar de alinharem pelo diapasão único da política comum, assumam a partitura de acção que sirva os seus interesses próprios. O caso recente do Iraque é elucidativo: no apoio aos Estados Unidos, a União ficaria partida ao meio, e nada de política comum que pudesse juntar-lhe os cacos.
O mal está em que elites iluminadas, sem qualquer preocupação com o sentir dos respectivos povos, desenharam o projecto duma Europa como unidade política que não existe, cavalgando a onda e abandonando a política dos pequenos passos preconizada pelos pais fundadores.
Porque sou europeísta, é que não quero, em consciência, ser envolvido numa decisão que, ou fica em muitos casos letra morta, ou pode significar a prazo a morte da Europa possível. E a Europa possível é aquela que concita o acordo dos cidadãos e não apenas o das elites iluminadas que ocasionalmente se encontram no poder.
Citizen Kane

*para assuntos de sociedade e cidadania, cultura….