sábado, 26 de janeiro de 2008

Pedaços de inteligência que uma Universidade prescindiu de ouvir...parte II

*Agora
E agora deve-se perguntar. E o que é a Universidade? Qual o seu objectivo/ função?
È uma pergunta gigantesca à qual tentarei responder de uma forma telegráfica com algumas observações.
Penso que se possa dizer que a verdadeira, íntima origem da Universidade esteja na vontade de conhecimento que é própria do homem. Ele deseja conhecer tudo o que o rodeia. Quer a verdade. Neste sentido, podemos ver no questionar socrático o impulso a partir do qual nasce a Universidade ocidental. Penso por exemplo (para mencionar apenas um texto) na disputa com Eutifrones, que em frente a Sócrates defende a religião mítica e a sua devoção. Ao que Sócrates contrapõe com a questão:” Tu crês que entre os Deuses exista realmente uma guerra recíproca e terríveis ódios e combates…Devemos dizer, Eutifrones, que tudo isto é verdade?” (6b-c). Nesta pergunta, aparentemente pouco devota, mas que em Sócrates advêm de uma religiosidade muito profunda e pura, de busca de um Deus verdadeiramente divino, reviram-se, bem como ao seu caminho, os cristãos dos primeiros séculos. Acolheram a sua fé, não de um modo positivista ou como a saída dos desejos não saciados; entenderam-na como o esvanecer do nevoeiro da religião mitológica para se abrirem à descoberta daquele Deus que è razão criadora e simultaneamente razão-amor.
Por isto, interrogarem-se sobre a razão de um Deus maior, assim como sobre a verdadeira natureza e sobre o verdadeiro sentido do ser humano, era para eles, não uma forma problemática de falta de religiosidade, mas era parte da essência do seu modo de ser religioso. Não tinham pois necessidade de desfazer ou pôr de lado a questão socrática, mas podiam, antes deviam, aceitá-la e reconhecê-la como parte da própria identidade a procura fastidiosa da razão para chegar ao conhecimento da verdade inteira. Podia, antes devia, no âmbito da fé cristã, no mundo cristão, nascer assim a Universidade

Mas é necessário dar um outro passo. O homem quer conhecer - quer a verdade. A verdade é antes de tudo uma coisa de ver, de compreender, da “Teoría”, como lhe chama a tradição grega.
Mas a verdade não é apenas teórica.
Agostinho, estabelecendo uma correlação entre as bem-aventuranças do sermão da montanha e os dons do Espírito Santo, mencionados em Isaías 11, assinalou uma reciprocidade entre “scientia” e “tristizia”: o simples saber, disse, torna-se triste. E, de facto, quem vê e aprende tudo aquilo que “vem do mundo” acaba por tornar-se triste. A verdade significa mais que saber: o conhecimento da verdade tem como fim o conhecimento do bem. Este é também o sentido da interrogação socrática: Qual o bem que é verdade? A verdade torna-se bem e a bondade é verdadeira: é este optimismo que habita a fé cristã, porque a ela foi concedida a visão do logos, da razão criadora que, na encarnação de Deus, foi revelada como o bem, como a própria bondade.

Na teologia medieval houve uma profunda discussão sobre a relação entre a teoria e a prática, sobre a justa relação entre o conhecer e o agir – uma discussão que não queremos aqui desenvolver. Com efeito a Universidade medieval com as suas quatro faculdades apresenta esta correlação. Começamos com a faculdade, que segundo a compreensão de então, era a quarta, a de Medicina. Ainda que fosse considerada mais arte que ciência, a sua inserção no cosmo da Universitas significava claramente que era colocada no âmbito da racionalidade, que a arte de curar era domínio da razão e não da magia.
Curar é um objectivo que exige sempre mais que a simples razão, mas por isso mesmo precisa de uma conexão entre saber e poder, precisa de pertencer à esfera da ratio.
Inevitavelmente aparece a questão da relação entre prática e teoria, entre conhecimento e acção na faculdade de Jurisprudência. Trata-se de dar uma forma justa à liberdade humana que é sempre liberdade na comunhão recíproca: o direito é o pressuposto da liberdade e não o que se lhe opõe. Mas aqui emerge outra questão. Como se individualizam os critérios de justiça que tornam possível uma liberdade vivida conjuntamente e servem o ser bom do homem? Impõe-se um salto até ao presente: é a questão de como pode ser encontrada uma norma jurídica que constitua uma ordenação/ orientação da liberdade, da dignidade humana e dos direitos do homem. É a questão que ocupa hoje os processos democráticos de formação de opinião e que ao mesmo tempo angustia como questão para o futuro da humanidade.
Jürgen Habermas exprime, a meu ver, uma opinião consensual do pensamento actual, quando diz que a legitimidade de uma carta constitucional, pressuposto da legalidade, deriva de duas fontes: da participação política igualitária de todos os cidadãos e da forma “ragionevole” (razoável/ raciocinável) com que as divergências políticas sejam resolvidas.
No que respeita a esta “forma ragionevole” ele faz notar que essa não pode ser apenas uma luta pela maioria aritmética, mas que deve caracterizar-se como “um processo de argumentação sensível à verdade”. Disse bem, mas é coisa muito difícil de transformar em prática política. Os representantes daquele público “processo de argumentação” são – sabemo-lo – prevalentemente os partidos, como responsáveis da formação da vontade política. De facto, esses, visam sobretudo alcançar a maioria e ocuparem-se inevitavelmente dos interesses que prometeram satisfazer; tais interesses são, porém, muitas vezes, particulares e não servem verdadeiramente o todo. A sensibilidade para a verdade é ciclicamente sobreposta pela sensibilidade aos interesses.
Eu acho significativo que Habermas fale de sensibilidade para a verdade como um elemento necessário no processo de argumentação política, reinserindo assim o conceito de verdade no debate filosófico e político.
Papa Bento XVI
*Agora (assuntos religiosos)